Marcelo Cypel (*)
Nas últimas semanas, se estabeleceu no Brasil uma onda de desinformação, movida pelas mídias sociais, sobre o Comboio da “Liberdade” no Canadá. Comparações do primeiro-ministro Justin Trudeau com antigos ditadores demonstram falta completa de conhecimento do sistema político e da história de solidez democrática do país. E servem só para agradar discursos de ódio.
Estou morando no Canadá há 17 anos. Nesse período, o país já foi governado for ótimos governos conservadores e liberais. Na prática da vida diária, quem governa o país faz muito pouca diferença; a política aqui sempre foi monótona.
É interessante como esse assunto atualmente é mais falado no Brasil do que no próprio Canadá. O canadense continua tocando a vida normalmente: trabalhando, levando as crianças às escolas, indo para as estações de esqui no fim de semana, ou viajando para o Caribe e a Flórida para escapar do frio do inverno.
O comboio da “Liberdade” começou com o argumento da contrariedade do passaporte vacinal e outras medidas de proteção da população frente à pandemia pelo governo Federal. Entretanto, a maior parte dessas medidas são de responsabilidade das províncias, muitas governadas por conservadores (incluindo Ontario, onde moro). Além disso, muitas políticas de passaporte vacinal são determinadas pelas próprias empresas, em nível privado.
Manifestações são saudáveis numa democracia. Entretanto, ao longo das semanas ficou claro que esse comboio não passou de um movimento organizado e financiado por setores da extrema-direita americana para tentar enfraquecer um governo de oposição (de fato mais de 1,1 mil financiadores dessa ocupação também financiaram a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021). Trudeau, assim como a grande maioria dos canadenses, sempre foi a favor do passaporte vacinal (em algumas atividades), e com esse discurso foi reeleito democraticamente em 2021.
O Canadá tem 92% da população acima de 12 anos vacinados e quase 60% das crianças entre cinco e 11 nos. O resultado são 35 mil mortos em dois anos de pandemia (um dos menores índices entre todos os países ocidentais), enquanto os vizinhos do sul, por exemplo, estão chegando a 1 milhão de mortos, muito devido ao resultado de teorias da conspiração antivacina que provocam a baixa aderência vacinal. Essas conspirações não conseguiram entrar de forma forte no Canadá, um país onde a população acredita fortemente nas instituições e sobretudo na ciência.
A ocupação do centro da cidade de Ottawa e o bloqueio das pontes entre Canadá e EUA trouxeram prejuízos econômicos importantes tanto a nível governamental quanto para o pequeno empresário que teve que manter seu comércio fechado no centro de Ottawa por mais de três semanas — não pela pandemia, mas pelo bloqueio do direito de ir e vir (Trudeau conseguiu aprovar no parlamento, que não tem maioria liberal, o ato de emergência para desfazer a ocupação).
Seja qual for o seu lado político: ocupação não é protesto, bloqueios não são liberdade, demanda externa para tentar derrubar um governo eleito democraticamente não é diálogo, expressões de ódio não são diferença de opinião, mentiras declaradas na internet não as fazem uma verdade. A grande maioria silenciosa da população canadense sabe disso. E a tentativa externa de polarizar a população falhou. Essa é a vida real, não a virtual. Quem quiser conferir pode vir a Toronto: visite a CN Tower, vá no jogo do Toronto Raptors e depois vá festejar num pub em volta da Scotiabank Arena. Depois, se ainda quiser, pode sair na rua para se manifestar pela “falta da liberdade”.
(*) Médico formado pela PUCRS, diretor-cirúrgico do Programa de Transplantes de Orgãos da University Health Network e professor de cirurgia na Universidade de Toronto, no Canadá