Descobrir onde viveram nossos antepassados é a oferta dos testes de ancestralidade, muito populares na Europa e nos Estados Unidos e que cada vez mais conquistam o Brasil.
Analisando o nosso genoma, é possível saber se temos mais antepassados que foram nativos das Américas, da África ou da Europa. A promessa dos testes de ancestralidade é refazer trajetórias geográficas individuais, desvendando de onde vieram nossos ancestrais, se mais ao norte da Itália ou mais ao sul, por exemplo.
- Desde os anos 1990 que os testes de ancestralidade genética são usados por cientistas para estudar a história evolutiva e demográfica de populações humanas. Como as pessoas começaram a ter interesse em saber sua ancestralidade genética, passaram a pagar por esse serviço - contextualiza a professora Maria Cátira Bortolini, do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Funciona da seguinte forma: laboratórios especializados em genética vendem um kit com cotonete que coleta a saliva, o chamado swab. O material retorna por correio à empresa, que extrai o DNA do cliente e o analisa.
Como os seres humanos têm uma genética quase idêntica - 99,9% do genoma é igual entre todos os indivíduos da espécie humana - os testes de ancestralidade se baseiam em uma pequena parcela, cerca de 0, 1%, que define nossas diferenças.
- Ou seja, alguns de nós são mais altos, outros mais baixos, alguns mais robustos, outros têm mais pigmentos na pele, outros menos. Essas pequenas variações estão nesse 0,1% do genoma, e são essas características que os testes vão avaliar - explica a professora Clarice Alho, da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
Pode parecer que 0,1% do nosso genoma é pouco material para indicar de onde vieram nossos ancestrais, mas não é. Segundo o professor Eduardo Tarazona, do Departamento de Genética, Ecologia e Evolução da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), essa parcela contém em torno de três milhões de letras de DNA que podem falar muito sobre a trajetória de quem veio antes de nossos avós, bisavós e tataravós.
- O que posso determinar a partir disso? Qual porcentagem dos meus ancestrais são do norte da Europa, do sul da Europa ou do Mediterrâneo. Consigo discriminar se o componente africano do meu DNA vem da região mais central da África, onde fica a Nigéria, ou da região mais ao sul, como Moçambique. No caso de um brasileiro, vemos que parte do genoma dele tem origem indígena - explica.
O resultado é apenas uma estimativa, e não algo definitivo. Isso porque os testes não acessam as informações genéticas de todos os ancestrais que estão na nossa linhagem. Não foi feito o perfil genético do avô, do bisavô nem do tataravô. O que a análise faz é confrontar um genoma individual com o perfil médio da população européia, africana, e assim por diante.
Para isso, comparam o material genético do cliente com genomas depositados em bancos de dados, pertencentes a pessoas que recentemente tiveram seu material genético sequenciado e que foram classificadas em relação à sua origem geográfica.
Como os laboratórios têm seus bancos de dados renovados toda vez que alguém se submete ao teste de ancestralidade, as informações genéticas são ampliadas, o que pode fazer com que trajetórias já traçadas sofram alterações. Portanto, quem recebeu um resultado que indica que parte de seus antepassados é da Itália pode descobrir que, na verdade, eram da Áustria, que fica perto dali.
Ainda assim, os testes de ancestralidade podem ser levados em consideração, garantem os cientistas.
- Dá para confiar, sabendo que há chances de o resultado ser refinado com o tempo - diz Clarice.
Na avaliação de Tarazona, o equívoco dos testes está justamente no que pode parecer mais tentador: dizer com precisão se a pessoa tem antepassados do norte da Itália ou do sul, se sua origem indígena é Tupi Araquém ou Tupi Mondé.
- Cada vez que se tenta ser mais específico, há mais chance de dizer bobagem. Os testes seriam mais sérios se indicassem apenas a região. Isso porque italianos do norte e franceses do sul são similares geneticamente. Quanto mais próximas forem essas populações, mais similares elas são - diz o professor.
Diversidade étnica
Os testes de ancestralidade são vendidos com o apelo do autoconhecimento. Ou seja, que a pessoa, ao ter uma estimativa da origem de seus antepassados, também entende melhor a si mesma. Mas há uma resistência, por parte de alguns cientistas, em falar sobre as diferenças genéticas: o medo é que isso recaia em uma possível exaltação de um grupo étnico em relação a outro.
É um trauma causado por movimentos racistas do século passado, como o nazismo e o fascismo, que defendiam a ideia de que havia uma raça superior à outra.
- Naquele momento da história, a informação da diferença biológica foi usada de forma cientificamente errada para justificar o racismo. Alguns cientistas que defendiam Mussolini apoiaram o chamado manifesto da raça para justificar leis raciais contra os judeus. Então, alguns cientistas têm esse trauma do mau uso da genética para justificar o racismo. Mas isso não pode levar a gente a desconhecer que existem diferenças entre os indivíduos e as populações humanas - considera Tarazona.
Em vez de usar o 0,1% do nosso DNA que determina as diferenças para procurar aspectos melhores ou piores entre os grupos étnicos, o caminho, dizem os cientistas, é entender essas distinções como uma riqueza da espécie humana.
- Lembrar que existem diferenças entre populações pode, para alguns, reforçar a ideia de uma população superior à outra. Muitas pessoas entendem assim. Já eu acho que isso é criminalizar a diversidade biológica, quando isso nunca deveria ser criminalizado. O crime não é ser diferente, é atribuir valor negativo à diferença - ressalta a professora Maria Cátira.
A guerra entre os seres humanos e a injustiça cometida contra alguma população podem ocorrer por outros motivos além da genética, lembra Tarazona.
- A diversidade genética é uma coisa bonita, para ser celebrada. Por outro lado, não é só a genética que pode ser mal utilizada para justificar o racismo. As pessoas se matam por motivos religiosos, culturais, que nada têm a ver com genética.