Uma nova estratégia de combate ao coronavírus vem ganhando impulso em diferentes países após estudos iniciais indicarem bons resultados.
A combinação de imunizantes produzidos por diferentes laboratórios entre a primeira e a segunda dose, como AstraZeneca e Pfizer, tem desempenho promissor e já é admitida por governos como os de Alemanha, Canadá, Espanha e França. Mas há especialistas que consideram as pesquisas disponíveis sobre isso ainda insuficientes e avaliam como precoce e arriscada a adoção dessa estratégia – ainda não cogitada no Brasil ou pela Secretaria Estadual da Saúde (SES) do Rio Grande do Sul.
Um estudo pré-print (anterior à avaliação por outros cientistas), divulgado na sexta-feira (25) e sob análise da revista científica Lancet, aumentou o interesse internacional sobre essa nova abordagem: os pesquisadores compararam a resposta imunológica produzida por quem tomou duas doses da vacina de Oxford/AstraZeneca e quem recebeu duas aplicações da Pfizer com voluntários que tomaram Pfizer e depois AstraZeneca ou o inverso.
Em caráter preliminar, a análise conclui que o nível de anticorpos produzido em quem contou com uma dose de cada fabricante em intervalos de quatro semanas foi superior em comparação a quem foi contemplado somente com AstraZeneca, por exemplo. O texto do trabalho, que reuniu 830 voluntários, aponta que "essas informações apoiam a flexibilização na vacinação heteróloga (que usa produtos diferentes) das doses inicial e de reforço”.
— Essa é uma boa notícia por mostrar que todas as possíveis combinações envolvendo Oxford/AstraZeneca e Pfizer/BioNTech geram uma forte resposta imune contra a covid-19 — avaliou a integrante da força-tarefa de covid-19 da Sociedade Britânica de Imunologia, Deborah Dunn-Walters, conforme o site Science Media Centre.
A partir de agora, uma nova etapa vai analisar a combinação entre produtos de outros laboratórios, como Moderna e Novavax, e testar outros intervalos, como períodos de 12 semanas. Ao mesmo tempo, entre outras iniciativas, pesquisadores russos estão testando a mescla da Sputnik V com o imunizante de Oxford.
No Rio, a prefeitura autorizou gestantes que tomaram a primeira dose com AstraZeneca a receberem reforço com Pfizer (em razão de questões de segurança envolvendo o imunizante de Oxford para as grávidas). Mas há cientistas, como a imunologista e professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) Cristina Bonorino, que recomendam maior prudência em relação ao cruzamento desses produtos.
— A maior parte dos estudos já feitos sobre isso é observacional, com base em pessoas que tomaram a segunda dose de forma equivocada com outra vacina, e com amostras ainda pequenas em comparação aos ensaios clínicos feitos pelos laboratórios de cada vacina com 40 mil, 50 mil pessoas e por períodos de tempo mais longos — argumenta Cristina, que também integra o comitê científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI).
A imunologista avalia que não é hora de os gestores da saúde brasileiros fazerem “apostas”. Ela entende que o melhor é aguardar resultados mais robustos de análises em andamento:
— Seria uma irresponsabilidade fazermos isso agora (mudar o regime de vacinação), quando enfrentamos uma das piores situações em relação à pandemia no mundo. A hora é de seguir os protocolos estabelecidos.
Consultada por GZH, a SES informou que, até o momento, “o RS segue a recomendação do Ministério da Saúde de que as gestantes e puérperas vacinadas com AstraZeneca não devem receber a segunda dose com nenhuma vacina”. A prefeitura da Capital disse que qualquer mudança dependeria do envio de uma nota técnica da SES ou do governo federal.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) se manifestou por meio de nota informando que “a decisão de utilizar diferentes vacinas combinadas no esquema vacinal é uma estratégia do PNI. Assim, o protocolo de imunização não é definido pela Anvisa, mas deve levar em consideração as informações conhecidas sobre cada vacina e seu perfil de segurança e eficácia”.
O órgão regulador sustenta ainda que “este é um tema de interesse para as estratégias de vacinação pública coordenadas pelos governos e não é, no momento, tema de discussão de agências regulatórias. Todas as vacinas analisadas e autorizadas pela Anvisa possuem perfil de segurança bem estabelecido”. Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Estudos promissores
A biomédica Mellanie Fontes-Dutra, integrante dos grupos Rede Análise Covid-19, equipe Halo da ONU, InfoVid, Todos Pelas Vacinas e União Pró-Vacina, vê um bom potencial nas primeiras pesquisas sobre a combinação de produtos de laboratórios diversos em duas aplicações:
— É uma estratégia interessante, que tem trazido resultados sólidos de segurança e resposta imunológica. Ainda faltam mais estudos complementares com dados de eficácia, mas pesquisas de imunogenicidade (capacidade de estimular a geração de anticorpos) e segurança são promissores.
Uma possibilidade aberta por essa frente de pesquisa é permitir flexibilizações no plano de imunização para obter melhores resultados, seja pelo indicativo de maior geração de anticorpos ou para compensar a eventual escassez de um produto específico. Ainda assim, Mellanie não acredita que seja uma fórmula a ser colocada em prática imediatamente no país:
— Acho complicado fazer isso no Brasil porque falta uma maior coordenação. Seria mais um regime diferenciado de aplicação de vacinas. Pode ser algo a ser visto até no contexto de, mais adiante, se oferecer uma terceira dose.
A oferta de uma terceira aplicação, com um imunizante diferente (para quem tomou as duas doses inicialmente previstas com um mesmo produto), é outro ponto em discussão em países como a Inglaterra – onde pesquisadores seguem estudando esse novo front de combate à pandemia.
Tire suas dúvidas
O que é a vacinação cruzada, combinada ou heteróloga?
É a utilização de um imunizante para uma dose inicial e de um produto de outro laboratório para a dose de reforço ou, até, para a aplicação de uma terceira dose.
Onde já vem sendo utilizada?
Países como Espanha, Inglaterra, Itália, Alemanha, Canadá, Coreia do Sul, Chile, França, Finlândia, Noruega, Portugal, Suécia e Emirados Árabes recomendam ou autorizam a combinação de vacinas de AstraZeneca e Pfizer. Outras combinações, envolvendo imunizantes da Moderna e Novavax, por exemplo, também serão estudadas. Os EUA, por enquanto, preveem essa possibilidade apenas para casos excepcionais.
Qual o intervalo?
Ainda estão sendo estudados os melhores intervalos entre as doses. Um dos estudos mais recentes, feito na Inglaterra, utilizou inicialmente quatro semanas, e agora vai empregar 12 semanas.
Quais as vantagens?
Há indícios preliminares de que a resposta imunológica pode ser até melhor com a mistura de laboratórios do que com o uso de um mesmo produto. Uma das possibilidades é de que as vacinas estimulem setores um pouco diferentes do sistema imunológico ou ajudem os anticorpos a reconhecer o vírus de maneira mais ampla. Isso também ode facilitar estratégias nacionais de imunização ao possibilitar a substituição de uma vacina escassa por outra.
Quais as desvantagens?
Há especialistas que consideram os estudos ainda muito preliminares, alguns deles observacionais (sem tanto rigor quanto estudos mais estruturados) e com muito menos participantes do que os ensaios clínicos que levam à liberação das vacinas (com dezenas de milhares de voluntários em diferentes países). Nem sempre resultados iniciais se confirmam, na prática, quando um número muito maior de pessoas é envolvido. Isso poderia levar a prejuízos nas campanhas de vacinação em andamento.
Além disso, um estudo em fase de preprint (preliminar) enviado à revista Lancet informa que foram detectadas reações colaterais um pouco mais intensas à vacina quando há a mistura de imunizantes – como febre, fadiga e dor de cabeça. Esses sintomas geralmente desapareceram em até 48 horas.
Qual a perspectiva para entrar em uso no Brasil?
A prefeitura do Rio decidiu por conta própria admitir essa possibilidade no caso das gestantes que tomaram primeira dose com AstraZeneca (que tem questões de segurança em relação à gestação), mas ainda não há mudança à vista no plano nacional de imunização. Seria necessário que o Ministério da Saúde incluísse essa nova estratégia nas orientações nacionais a Estados e municípios. As secretarias de saúde do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre informaram não ter qualquer mudança de posicionamento à vista nesse sentido.