Por Flávio José Kanter
Médico, autor de “Bom Dia para Você, com um Sorriso” (Ed. AGE, 2020)
“O bom médico trata as doenças, o grande médico trata o paciente”
William Osler
Medicina existe há muito tempo. Hipócrates, considerado o pai da medicina moderna, viveu na Grécia há uns 2,4 mil anos. Sabe-se que, 2 mil anos antes dele, no Egito antigo, Imhotep já desenvolvia a medicina.
Noah Gordon descreve, no livro de ficção O Físico, o périplo de um jovem londrino que decide deixar de ser curandeiro e busca formação médica de qualidade. Vai se aconselhar com renomado médico, que recomenda que viaje ao Oriente, pois era na Pérsia que Avicena liderava o desenvolvimento da medicina do futuro. Isso por volta do ano 1.000 da nossa era. Maimônides, médico judeu que cuidou da corte de Saladino no Cairo, viveu por volta dos anos 1.200. Revolucionou noções de higiene e nutrição, introduzindo lavagem de mãos antes das refeições, banho semanal, destino de dejetos e captação de água limpa para uso doméstico. Moacyr Scliar escreveu que, “ao fim e ao cabo, a medicina é isso, uma relação especial entre pessoas”.
Exercer a medicina consiste em acolher, escutar com atenção, curiosidade, empatia e respeito. A pessoa é depois examinada, e os dados são assim obtidos. Ouvindo e examinando se pode construir um conjunto de informações com significado. E aí combina-se um plano para investigar e tratar. Às vezes é preciso tempo para estudar e também agregar mais profissionais.
A natureza da medicina é essa há séculos. A inovação não para. A medicina do futuro está sempre ali adiante. Muitas inovações chegam para enriquecer a prática médica. Outras não se sustentam. Algumas reduzem seu papel a algo menor do que fora imaginado, e há as que se esvanecem por serem inúteis ou por por efeitos indesejados.
Nos últimos cem anos, quase dobrou a expectativa de vida ao nascer – perto de 80 anos no Rio Grande do Sul. Não se tem ainda a medida atual considerando o impacto da covid-19. O fato é que passamos dos 40 para os 80 devido a medidas de alcance populacional, como saneamento e água potável, vacinas e hábitos de higiene. Ações médicas também impactaram, mas de modo menos pronunciado. Os antibióticos e os novos tratamentos de muitas doenças, o surgimento de unidades intensivas, os hábitos de vida e alimentares contribuíram. Novos recursos diagnósticos se somaram para oferecer vida mais longa e de melhor qualidade.
A era digital oferece contribuições inestimáveis na assistência e no acesso ao conhecimento. Por que, então, os médicos dispõem de menos tempo para cada paciente e, por isso, ouvem menos, examinam menos e pedem mais exames para suprir essa falha básica?
Pesquisas revelam que os médicos estão usando menos tempo com cada paciente. Há mais trabalho burocrático e formalidades. Mediram o tempo médio que leva para médicos interromperem a narrativa espontânea dos pacientes em consultas: foram 18 segundos!
Em hospitais norte-americanos, nos últimos 20 anos, o número de funcionários administrativos aumentou 10 vezes mais do que o dos envolvidos em assistência. Os custos dos incrementos exigiram profissionalização, surgimento de uma terceira parte (planos de saúde, seguros, serviços públicos e privados constituindo um triangulo no que antes era só médico-paciente).
Dr. Bernard Lown publicou, em 1976, A Arte Perdida de Curar, no qual se refere às inovações que substituíram a arte da medicina, o componente relacional entre pessoas e seus médicos sendo substituído por tecnologia. Embora o título sugira isso, o livro inteiro nos mostra que não se perdeu nem é aceitável perder-se a dimensão humana quando se atendem pessoas. As inovações úteis serão incorporadas. O bom médico vai usá-las. O contato entre pessoas não vai ser substituído; vai, isso sim, ser enriquecido com a medicina do futuro.
Medicina relacional entre pessoas e médicos existe há muito tempo, e vai continuar existindo.