Por Fernando Neubarth
Médico e escritor
No final do século 20, Bernard Lown alertou que, apesar de todo o avanço tecnológico no diagnóstico e no tratamento de muitas e variadas doenças, o doente tornara-se ainda mais negligenciado. A prática médica presa a uma engrenagem complexa, empresarial, sobretudo no modelo norte-americano, a atenção não necessariamente à promoção da saúde e do bem-estar. Médicos e, principalmente, pacientes premidos por oferta crescente de exames, às vezes excessiva e inadequada. Sob pressões da indústria farmacêutica, de equipamentos e recursos diagnósticos, seguros e planos de assistência, resultando em paradoxal insegurança, dúbias opções “alternativas” e inescrupulosa “judicialização”. Algo se perdera.
Bernard Lown nasceu em Utena, Lituânia, em 7 de junho de 1921, tendo a família emigrado para os Estados Unidos em 1935, ameaçada pelo nazismo. Formou-se em Zoologia na Universidade do Maine em 1942 e em Medicina na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, em 1945. Após estágios em Connecticut e na cidade de Nova York, mudou-se para Boston em 1950 e na década seguinte ensinou e conduziu pesquisas cardiovasculares no Hospital Peter Bent Brigham e na Harvard Medical Scholl até que, devido ao macarthismo, passou a atuar em saúde pública e no seu próprio Instituto.
Em 1962, Lown desenvolveu, com ajuda do engenheiro médico Barouh Berkovits, um novo método para corrigir ritmos cardíacos perigosamente anormais. Considerada, na época, causa de 40% de meio milhão de ataques cardíacos fatais por ano, somente nos Estados Unidos, as fibrilações passaram a ser tratadas por esse novo modelo de desfibrilador, que usava corrente elétrica contínua ao invés da corrente alternada, sem lesar o coração. Surgiam aí também as unidades de cuidado cardíaco intensivo, e é incalculável quantas mortes precoces, desde então, foram evitadas. Lown também estimulava que o paciente “saísse” do leito precocemente após um ataque cardíaco, prática que é hoje natural; e seu nome designa, apropriadamente, uma escala que gradua a severidade de arritmias.
Fundou a SatelLife USA, organização sem fins lucrativos que possui até um satélite para auxiliar no treinamento clínico profissional na África e na Ásia e a ProCor, rede global de comunicação pela web, que promove assistência e ensino para países em desenvolvimento.
Instigado por uma palestra sobre medicina e guerra nuclear, em 1961 ele fundou a Physicians for Social Responsability. No ano seguinte publicou um estudo especulando as consequências na saúde pública de um hipotético atentado nuclear em Boston, concluindo – que o ataque a uma cidade esgotaria todos os recursos médicos do país apenas para tratar as vítimas de queimaduras. Ajudou a fundar a organização Médicos Internacionais para a Prevenção da Guerra Nuclear, parceria entre médicos norte-americanos e soviéticos. O grupo somava 135 mil membros em 41 países em 1985, ano que recebeu o Prêmio Nobel da Paz. A participação soviética, no entanto, fez a crítica conservadora minar o movimento, imputando aos seus líderes um viés ingênuo e logo a suspeita que serviria à propaganda “comunista”. Em um livro de memórias de 2008, Prescrição para a Sobrevivência: uma Jornada do Médico para Acabar com a Loucura Nuclear, Bernard Lown conta essa história e adverte: “É um desafio histórico questionar se nós, humanos, temos um futuro no planeta Terra”.
Antes, em 1996, publicou o livro A Arte Perdida de Curar, um libelo ao resgate do humanismo na medicina, encantando e dando ânimo a todos que acreditam que uma boa relação médico-paciente é não só o instrumento principal da prática, mas o antídoto pragmático para as muitas mazelas que desvirtuam a confiança e os melhores desfechos.
Lembra Hipócrates, 2,5 mil anos atrás: “Onde quer que haja amor humano também existe o amor à arte. Alguns pacientes, embora cientes de sua perigosa situação, recuperam a saúde simplesmente por causa de sua satisfação com o médico”. Bernard Lown segue a senda de outros pensadores da arte médica. Assim como Paracelso, no século 16, que incluiu entre as qualificações básicas do médico “a intuição necessária à compreensão do paciente, de seu corpo e de sua doença... Devendo possuir o sentimento e o tato que lhe possibilitem entrar em comunicação solidária com o espírito do paciente”, e, no mesmo caminho de William Osler que, nas últimas décadas do século 19 e início do século 20 entendia a medicina não somente como ciência, mas como “a arte da medicina à luz da ciência” e afirmava que “o bom médico trata a doença, o grande médico trata o paciente que tem uma doença”.
Em meio à pandemia, que subverte preceitos e convicções e reafirma valores, Bernard Lown se despede. Faleceu em sua casa, em Chestnut Hill, Massachusetts, no dia 16 de fevereiro de 2021, aos 99 anos. Médico cardiologista inovador, ativista social e antiguerra nuclear e, sobretudo, um gigantesco humanista. Seu legado está garantido: “O médico deve confiar na arte da compreensão humana para ampliar a visão que a ciência lhe outorga”. Essa afirmação é ampla e serve à toda sociedade.