Enquanto convive com uma pandemia que atinge o mundo inteiro, o Rio Grande do Sul também enfrenta neste ano uma velha conhecida, mas que alcança recordes. O número de mortes e de casos de dengue contabilizados até o dia 15 de maio já é maior do que todos os últimos anos desde 2010, mesmo quando considerado o período entre janeiro e dezembro — é o mais alto em pouco mais de uma década.
Os dados foram solicitados por GZH à Secretaria Estadual da Saúde (SES). A série histórica é contabilizada desde 2010 porque, segundo a SES, houve um surto inédito no Brasil e no Estado naquele ano, o que passou a ser usado como parâmetro.
Até agora, foram confirmados 5.790 casos de dengue no Rio Grande do Sul, conforme o último boletim epidemiológico divulgado nesta semana. Os anos que mais se aproximaram deste patamar, em 12 meses, foram 2020 e 2010, mas nenhum deles chegou a ultrapassar a marca dos 4 mil.
A situação fica ainda mais preocupante quando coloca-se uma lupa sobre a origem das infecções. Apenas 165 são consideradas importadas, ou seja, contraídas fora do Estado. Outras 5.625 são autóctones, o que corresponde a 97,15%. Os casos autóctones significam que a doença foi contraída em solo gaúcho, por meio de mosquitos que circulam nos municípios.
Já o total de mortes chega a sete, também o maior da última década. A mais recente foi confirmada no último dia 18 em Santa Cruz do Sul: uma mulher de 70 anos, cujo registro de óbito ainda não está incluído no boletim epidemiológico mais recente porque foi confirmado depois da publicação do documento.
Santa Cruz do Sul registrou outras duas mortes de mulheres de 54 e 84 anos. Erechim também teve três óbitos confirmados, de homens de 65, 66 e 90 anos. Já Bom Retiro do Sul teve um único registro, de uma mulher de 47 anos.
Desde 2010, os únicos anos em que o Rio Grande do Sul havia registrado óbitos pela doença foi em 2015, com dois, e em 2020, com seis.
Conviver com o mosquito
Das 497 cidades gaúchas, 414 são consideradas infestadas pelo mosquito Aedes aegypti, transmissor da doença. Para a responsável pelo programa das Arboviroses no Estado, Catia Favreto, a infestação somada a uma espécie de desvio de atenção são responsáveis pelo alto número de casos de dengue:
— O aumento da infestação aumenta o número de casos. O que também pode ter acontecido é que, desde 2020, com o início da pandemia, a população acabou se descuidando um pouco de algumas medidas básicas, como a própria limpeza dos pátios. A população ficou mais restrita em sua residência, orientada a não sair, e descuidou um pouco de fazer a limpeza básica, e isso acaba acumulando água, lixo, onde tem focos do mosquito.
O mosquito costuma circular mais em meses mais quentes, mas a coordenadora acredita que, com o passar dos anos, ele tenha se adaptado ao clima gaúcho, marcado pelo frio em determinadas épocas do ano. Como o Aedes não irá embora, a população deverá se adaptar:
— A gente tem que aprender a conviver com ele. Nós não vamos terminar com o mosquito, não existe isso. Temos é que mantê-lo não infectado. Então a população tem que se adequar a isso e manter as residências limpas.
A dica para evitar a proliferação do mosquito é não manter recipientes domiciliares com água parada. Entre as medidas possíveis, está manter as garrafas vazias com o gargalo para baixo, fechar caixas d'água, toneis e latões, escovar os bebedouros de animais, guardar pneus velhos sob abrigos e manter piscinas tratadas o ano inteiro.
Quatro cidades concentram mais de 80% dos casos autóctones
Os casos autóctones são os que mais causam preocupação, já que significam que há risco de infecção dentro do Rio Grande do Sul. Quatro municípios são responsáveis por 83,23% destes tipos de casos registrados em 2021 no Estado: Erechim, no Norte, soma 2.259, e é seguido por Santa Cruz do Sul, no Vale do Rio Pardo (1.169), Aratiba, no Norte (799), e Bom Retiro do Sul, no Vale do Taquari (455).
Somente Erechim concentra 40,16% dos pacientes. A cidade viveu o pico em abril e, com a chegada das temperaturas mais baixas, tem visto o número estabilizar nas últimas semanas.
Para o diretor da Vigilância em Saúde da cidade, Everton Pujol Guterres, a justificativa para a explosão de casos é multifatorial. Além dos itens citados por Favreto, ele acrescenta que o município é cortado pela BR-153, o que faz com que diferentes pessoas circulem pela região e entregadores de outros estados tragam, muitas vezes, o mosquito infectado nos veículos. Ele ainda acredita que a estiagem possa ter contribuído para o aparecimento do mosquito:
— Se não chove por muito tempo, começamos a falar em racionamento por aqui. E o pessoal começou a reservar muita água, fazia captação nas calhas e colocava em caixas d'água. E em muitos pontos onde a gente encontrou larvas do mosquito foi em reservatórios mal-instalados. Tinha gente coletando água em balde, tonel, caixa d'água aberta.
Desde o início do ano, já foram realizados mais de 3 mil bloqueios de transmissão na cidade. O processo é feito quando há confirmação de um caso: assim, a prefeitura aplica inseticida na casa do morador e também no vizinho da frente, da esquerda e da direita. O Executivo tenta trabalhar com prevenção para que não viva novo surto em setembro e outubro, quando há a volta dos meses mais quentes.
— Nós passamos por um período complicado com o coronavírus também. Com a dengue não agravou, mas era o medo que a gente tinha: o agravamento da pandemia e daqui a pouco ter cinco, seis, 10 leitos ocupados por dengue.
As prefeituras de Aratiba, Bom Retiro do Sul e Santa Cruz do Sul informaram que estão trabalhando com aplicação de inseticida em pontos estratégicos, conscientização, ações educativas e controle do número de casos, além de mutirões. As três também confirmaram fazer ações de recolhimento de lixo para remover possíveis focos do mosquito.
Em Santa Cruz do Sul, a prefeitura também detalhou que está distribuindo repelentes aos moradores e aderindo à testagem rápida, favorecendo o rastreamento dos casos. Na cidade, a maior parte dos moradores consegue tratar os sintomas em casas, tornando baixa a procura pela rede de saúde.
Sintomas
Conforme o boletim epidemiológico, os casos de dengue autóctones registrados no Rio Grande do Sul tiveram os "sintomas clássicos". A maior parte, 88,7%, teve febre. Um percentual de 83,3% apresentou cefaleia (dor de cabeça) e também mialgia (dor muscular). Além disso, 56,1% relataram náuseas.
Material publicado no Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs) indica que, normalmente, a primeira manifestação da dengue é a febre alta (39°C a 40°C). A febre tem início abrupto e geralmente dura de dois a sete dias, e é acompanhada de dor de cabeça, dor muscular, dor nas articulações, dor atrás dos olhos, exantema (erupção avermelhada na pele) e coceira. Náuseas e vômitos também podem ocorrer, além de manifestações hemorrágicas leves.
Doenças como febre chikungunya e zika vírus, também transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, possuem sintomas semelhantes. No caso da chikungunya, a dor nas articulações costuma ser mais aguda do que na dengue, e não é tão comum haver manifestações cutâneas. Já o zika vírus se destaca por uma febre mais baixa ou até ausência de febre, e seu sintoma predominante é o exantema, com coceira, além de conjuntivite.
Além de as três doenças terem sintomas semelhantes entre si, chama a atenção que boa parte deles pode ser confundido também com a covid-19, que não possui uma síndrome clássica, mas costuma ser caracterizada por febre, dor muscular, dor nas articulações e cansaço.
— Neste o contexto, o mais importante é que não há uma caracterização clínica para cada uma dessas doenças. Algumas tem manifestações mais pontuais. E a covid-19 pode ter todas essas (presentes nas outras três), o que diferencia é que, às vezes, há alteração no olfato e no paladar, que não tem nas outras. É importante ressaltar que, na condição de febre, dor no corpo, nas articulações e fadiga, o médico comece a fazer um diagnóstico diferencial, e não apenas foque no diagnóstico da covid-19 — explica o infectologista André Luiz Machado da Silva, do Hospital Conceição.