A história de John Hollis, 54 anos, impressiona. O escritor norte-americano dividia apartamento com um amigo que foi diagnosticado com covid-19. Porém, além de não ter desenvolvido a doença, pesquisadores da Universidade de George Mason, nos EUA, descobriram que ele tem uma espécie de superanticorpo que o impede de ser infectado pelo coronavírus. A história parece um caso raro, mas Hollis não é o único. A proporção é menor, mas diversas pessoas são capazes de produzir anticorpos potentes contra determinadas doenças, explicam especialistas ouvidos por GZH.
O que popularmente denominamos de superanticorpo, a ciência batizou de anticorpo neutralizante de amplo espectro. A literatura científica evidencia que é comum que a resposta imunológica do corpo a um vírus varie de pessoa para pessoa. Certos indivíduos podem ter a capacidade de produzir muitos anticorpos, alguns até com a capacidade de bloquear o desenvolvimento de doenças ou fazê-las regredirem. Enquanto outros podem produzir um número menor de anticorpos, assim como desenvolver uma proteção mais frágil. Isso tem a ver com idade e herança genética, entre outros fatores, explica a imunologista Cristina Bonorino, professora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
— O que se sabe é que esses anticorpos mais potentes têm a capacidade de se ligarem com força na exata região do vírus que se conecta ao receptor. Ao promover esse bloqueio, o vírus não tem como entrar na célula. Sempre se soube que tem pessoas que são, naturalmente, resistentes. Agora, conseguimos mapear a região em que o anticorpo deve se conectar para bloquear o contato entre vírus e célula. O que a ciência ainda não sabe apontar é quem pode ter esses anticorpos neutralizantes. Não tem como prever. Não existe um exame para isso, é preciso fazer uma pesquisa detalhada — diz Cristina, que também é membro do comitê cientifico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI).
No caso da covid-19, esses anticorpos dificultam o contato da espícula do vírus com a célula de forma mais precisa, impedindo, assim, a infecção. A professora da UFCSPA pontua que o fato de uma pessoa ter se recuperado da covid-19 não é sinônimo de que ela tenha esses anticorpos mais robustos, mas afirma que pode existir uma chance.
Qualquer doença infecciosa tem o seu superanticorpo correspondente
Essa proteção mais robusta não se limita ao coronavírus. Ela pode ser viável em qualquer doença infecciosa. No caso da dengue, por exemplo, existem quatro tipos de linhagens, e os anticorpos mais fortes testados conseguiram neutralizar a ação de todas. Daí, também, surgem aqueles casos de pessoas que são resistentes ao HIV, já que elas conseguem produzir anticorpo que evita a ligação do vírus com o receptor da célula. Mas isso é raro e demanda tempo descobrir quem tem esse superanticorpo, explica Moises Bauer, professor titular de Imunologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).
— Geralmente, eles são produzidos em 20% dos pacientes com HIV. E, para descobrir isso, é preciso esperar, pelo menos, dois anos após a infecção para a realização das pesquisas. Mas os pacientes que apresentam anticorpos neutralizantes podem ter um controle melhor do vírus no corpo, têm uma estabilidade clínica melhor e não precisam tomar nenhum retroviral — explica.
Bauer ainda cita que, em um experimento, os superanticorpos foram coletados de um humano, transformados em soro e esse material foi dado a macacos. Posteriormente, esses animais foram infectados com um vírus primo do HIV. Como resultado desse estudo, foi verificado que o superanticorpo bloqueou completamente o desenvolvimento da doença e freou a sua transmissão:
— Como ele não desenvolveu a doença, não tinha como passá-la adiante. Esses superanticorpos são o Santo Graal da ciência para várias infecções, como o vírus influenza, por exemplo. Agora, estamos tentando fabricar esses anticorpos neutralizantes em laboratório para que eles virem terapia e possam ser ministrados para os pacientes.
Tratamentos terapêuticos
Cristina ressalta, contudo, que esse processo de fabricação dos anticorpos é caro e demanda investimento. E que esse também vem sendo o foco de trabalho das multinacionais da indústria farmacêutica, principalmente, para sintetizar terapia contra o câncer:
— Isso é pura engenharia molecular. Primeiro, você isola o DNA das células, depois, reconstitui o anticorpo forte em laboratório e o transforma em um medicamento que possa ser ministrado ao paciente.
Um estudo em pré-print (ou seja, que não passou pela revisão de outros pesquisadores), divulgado este mês pelo bioRxiv (um site com um arquivo online de pré-prints), mostra que os superanticorpos feitos em laboratórios têm capacidade de neutralizar várias cepas do coronavírus, inclusive suas mutações.
O professor titular da PUCRS explica que esse tipo especial de anticorpo pode ser usado para fins terapêuticos em casos virais com o intuito de neutralizar o vírus. E, no caso de pacientes com câncer, podem estimular resposta imune ou eliminar células doentes. Para ambos os casos se faz uso da terapia com anticorpo monoclonal.
Anticorpo monoclonal nada mais é do que uma cópia sintética, feita em laboratório, a partir de um clone de um anticorpo específico. Neste caso, do superanticorpo que foi extraído do sangue de um indivíduo que se recuperou da doença que se deseja atacar ou tratar.
— Depois que o anticorpo monoclonal é sintetizado, é possível produzir esse anticorpo mais potente em litros. A ideia, com essa técnica, é fazer soro terapêutico para tratar pessoas com covid, influenza, câncer, entre outros, para neutralizar a enfermidade. Essa, talvez, seria a única alternativa para curar pacientes do coronavírus, por exemplo, e não os deixar progredir para o quadro grave. E, com esse mesmo raciocínio, se busca a criação de vacinas que neutralizem as variantes do coronavírus por meio da produção desses superanticorpos — afirma.