O caso envolvendo nebulização com hidroxicloroquina diluída em soro em pacientes com covid-19 em um hospital de Camaquã tem causado impacto na relação entre os profissionais e os pacientes. O diretor-técnico do Hospital Nossa Senhora Aparecida, Tiago Bonilha de Souza, relata quebra de confiança na relação com os familiares, já que eles fazem o acompanhamento a distância quando se trata de pessoas com diagnóstico positivo para a doença. Três pessoas morreram após serem submetidas ao tratamento.
— As pessoas estão com medo, privadas de lazer, então, estão atirando para todo o lado. Isso (o ocorrido) fragilizou mais a nossa relação médico-paciente. O paciente covid é acompanhado a distância pela família, ela não acompanha a evolução. Eu vou ligando, dizendo se melhorou, piorou, então preciso da plena confiança da família que está entregando aos meus cuidados — relatou, em entrevista ao Gaúcha Atualidade.
O impasse começou quando a médica Eliane Scherer aplicou a técnica experimental em um paciente, mesmo sem haver previsão deste tipo de tratamento nos regulamentos medicinais — já que o fármaco deve ser aplicado via oral, segundo o protocolo do hospital. Após este primeiro caso, outros pacientes solicitaram o tratamento, e conseguiram por meio de autorização judicial ou termo de conciliação.
O tratamento gerou conflitos entre outros profissionais, inclusive com recusa de equipes de enfermagem para o atendimento (conduta prevista no Código de Ética da profissão). Após o desligamento de Eliane, no dia 10, ficou acordado que ela poderia seguir atendendo os pacientes com autorização, enquanto que a equipe hospitalar só atenderia eventuais intercorrências quando ela não estivesse no local.
Entre segunda (22) e quarta-feira (24), três pacientes morreram. Segundo o diretor-técnico, dois já estavam em estado grave, e outro tinha boa evolução de quadro até realizar o tratamento experimental com nebulização. Uma pessoa recebeu alta.
— O resumo todo desta situação foi atirar gasolina em uma coisa que já estava pegando fogo. A gente já vivia uma situação difícil. Eu, que estou dos dois lados, sei o quanto é angustiante, o quanto dá trabalho cuidar de um paciente covid e quanto problema temos de falta de abastecimento, oxigênio, insumo, mão de obra e, em paralelo, a gente só vê a demanda de doentes aumentar. É uma situação dramática e isso não contribuiu em nada, porque gerou quebra de confiança no tratamento que a gente vinha aplicando até então.
Souza alerta para os riscos da aplicação do medicamento por via inalatória, em vez de oral:
— Está sendo usada uma medicação via oral por via inalatória, e isso já aciona um gatilho de segurança do paciente. A gente está fazendo inalação em um ambiente onde tem pacientes contaminados e, teoricamente, pacientes não contaminados. Todos os protocolos de atendimento a pacientes covid não preveem inalação porque contamina mais o ambiente, põe em risco a equipe (...) A partir daí, houve a questão do paciente que melhorou. Ele recebeu, em paralelo a essa terapia, todo o tratamento padrão. E, quando teve alta, foi para a rádio (emissora local) fazer o depoimento dele e acabou emocionando muito as pessoas, criando a expectativa de que seria uma terapia milagrosa.
Investigação
Eliane era contratada para atuar no pronto-socorro do hospital e foi demitida no dia 10 de março. A direção justificou a decisão como consequência do tratamento experimental e de atritos com os outros médicos responsáveis pelos leitos clínicos e pela UTI que não concordavam com os seus métodos. Na última segunda-feira (22), o hospital denunciou a profissional ao Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) por 17 supostas infrações médicas.
— O caso vai ser investigado pelo conselho através da abertura de sindicância, que vai apurar informações, buscar manifestações dos denunciados, dos prontuários e de todos os envolvidos. Não podemos estabelecer um juízo de valor para não fazer nenhum tipo de antecipação de julgamento. Mas gostaria sempre de lembrar a todos que fazer o uso de medicações off label, com usos não estabelecidos em bula, e principalmente usar em outras vias de administração fora do usual, tem que ser realizado dentro de protocolos de pesquisa muito bem estabelecidos, que passem por aprovação de comitê de ética, para não colocar a segurança dos pacientes em risco — afirma o vice-presidente do Cremers, Eduardo Neubarth Trindade.
O Ministério Público também recebeu representação do hospital, não só pela nebulização com hidroxicloroquina, mas também por outros fatos, como a falta de adoção de protocolos de prevenção à covid-19. A promotora Fabiane Rios instaurou um expediente para avaliar a abertura de inquérito.
Repercussão
As nebulizações de hidroxicloroquina diluída ganharam repercussão na última sexta-feira (19), quando o presidente Jair Bolsonaro pediu para participar ao vivo do programa de uma rádio de Camaquã para elogiar o tratamento experimental e defender a médica Eliane, que já estava desligada do hospital, embora seguisse atuando na ala privada da instituição.
Na ocasião, Bolsonaro fez referências positivas ao caso de um vereador da cidade de Dom Feliciano que buscou atendimento em Camaquã após apresentar sintomas da covid-19. Eliane havia feito nele a nebulização com hidroxicloroquina e, após a alta, tanto a médica quanto o parlamentar passaram a afirmar que o tratamento experimental havia salvo sua vida.
A equipe do hospital diz que a afirmação é insustentável, salientando que o caso dele era estável, sem necessidade de entubação ou internação em UTI, e que o paciente havia feito outras medicações, como corticoides e antibióticos, e fisioterapia.
GZH entrou em contato com Eliane Scherer e aguarda retorno.