A direção do Hospital Nossa Senhora Aparecida, de Camaquã, ingressou na tarde desta segunda-feira (22) com denúncia no Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) contra a médica Eliane Scherer. Dentre os motivos citados pela instituição, estão 17 infrações éticas cometidas por Eliane. Ela era contratada para prestar atendimento no pronto-socorro do hospital, onde aplicou nebulização com hidroxicloroquina diluída em soro em pacientes internados com sintomas ou positivos para a covid-19. A mesma peça de acusação foi protocolada no Ministério Público, que vai avaliar a possibilidade de abertura de inquérito.
O hospital permite a prescrição da hidroxicloroquina, mas a aplicação deve ocorrer pela via oral, e não pelo método de inalação, o que não é previsto nos protocolos oficiais. Não há comprovação da eficácia da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19, tampouco do seu uso experimental via inalação. Há risco de efeitos colaterais, como arritmia cardíaca, alertam médicos.
A casa de saúde alega que Eliane aplicou a nebulização em um paciente em ambiente aberto, e não de isolamento, sem os equipamentos adequados, o que pode ter colocado outros enfermos e funcionários em risco. A instituição ainda argumenta que a médica tentou aplicar a nebulização em internados nos leitos clínicos e de UTI. Ela não tinha autorização para atuar nessas unidades e supostamente entrou em conflito com outros médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem que não concordavam com os seus métodos. A direção do Hospital Nossa Senhora Aparecida diz que Eliane levava para dentro do hospital seringas trazidas de fora, com um líquido já contido no seu interior, o que seria contra os procedimentos tradicionais.
Pela soma de fatores, sobretudo o uso do tratamento experimental e a suposta interferência em outros setores, a empresa terceirizada que faz a gestão do quadro de funcionários do hospital tomou a decisão de demitir Eliane neste mês de março.
O vice-presidente do Cremers, Eduardo Neubarth Trindade, informou que, a partir da chegada de denúncia, é aberta uma sindicância para apurar eventuais desvios e infrações ao Código de Ética Médica. Os processos correm em sigilo. Encerrada a análise, o caso é arquivado quando não são identificadas faltas. Nas situações em que são apontadas infrações, a sindicância pode propor um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou instaurar um processo ético-profissional (PEP). Caso seja feita a opção pela abertura do PEP, são ouvidas testemunhas e colhidas provas documentais. No final, é realizado o julgamento por uma câmara. Eventuais condenações podem ser acompanhadas de cinco penalidades distintas, desde advertência confidencial até cassação do registro profissional.
O caso de Eliane ganhou repercussão nacional depois que o presidente Jair Bolsonaro telefonou para uma rádio de Camaquã, na manhã da última sexta-feira (19), para defender, em entrevista ao vivo, a médica e a nebulização de hidroxicloroquina aplicada por ela. O caso incendiou a opinião pública no município do Sul do RS. Médicos e enfermeiros vinculados ao hospital reclamam que estão sob pressão da comunidade. Profissionais que narraram terem sido intimidados por Eliane para auxiliá-la nos procedimentos de nebulização enviaram uma carta informando os fatos para o Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul (Coren-RS).
Médica se nega a assumir paciente que ganhou na Justiça direito de ser nebulizado, diz hospital
Pelo menos dois pacientes e seus familiares ingressaram com pedido judicial, na Comarca de Camaquã, requerendo autorização para que a médica Eliane Scherer possa fazer o tratamento da covid-19 com a experimentação da nebulização nas dependências do Hospital Nossa Senhora Aparecida.
Apesar de ter sido desligada, a profissional pode frequentar o hospital para tratar de pacientes da ala privada que a tenham como referência. Ela também poderia atuar no SUS com uma determinação judicial, mesmo sem vínculo empregatício.
Um dos pedidos foi negado pela Justiça, mas o outro foi deferido liminarmente na noite deste domingo (21). Um paciente internado com covid-19 obteve o direito de receber a nebulização ministrada por Eliane, mas o hospital diz que, ao comunicar a médica da decisão, ouviu a resposta de que ela não poderia assumir integralmente o caso. Diante dos fatos, até o momento, o enfermo segue aos cuidados da equipe regular do hospital.
Na decisão, o juiz Luis Otavio Braga Schuch, da 1ª Vara Cível da Comarca de Camaquã, autorizou o tratamento experimental aplicado pela médica, mas estabeleceu condicionantes, como a responsabilização por toda a evolução do paciente que buscou o Judiciário.
“A médica deverá assumir a responsabilidade pelo tratamento integral da paciente, e não unicamente pela medicação em questão, já que o tratamento é um conjunto de ações e medicamentos, não havendo como o fracionar. Isso não significa que a médica deverá permanecer no hospital 24 horas por dia, já que a instituição tem plantonistas e intensivistas para emergências. Todavia, o acompanhamento da evolução e modificação das prescrições deve ser feito pela referida médica, bem como deverá ser comunicada sempre que ocorrer alguma alteração no estado da autora (da ação judicial). O hospital deverá proceder a cientificação do paciente e/ou seus familiares de que o tratamento em questão é experimental e não atende os protocolos clínicos atuais para a covid-19, a fim de eximir a responsabilidade do hospital sobre consequências futuras do tratamento que ora está sendo requerido”, despachou o juiz.
A casa de saúde registrou no processo judicial, nesta segunda-feira (22), ter comunicado a médica Eliane sobre a autorização para tratamento do paciente, mas a profissional teria dito que não poderia assumir o caso.
“Mantenho a paciente sob cuidados do setor covid da instituição”, relatou o hospital após ter comunicado ao Judiciário a negativa de Eliane.
A reportagem contatou a médica Eliane Scherer para questionar os motivos que a levaram a declinar do tratamento da paciente que buscou a Justiça, mas não houve resposta. Também foi solicitada manifestação sobre a decisão do hospital em denunciá-la ao Cremers, mas, novamente, não houve retorno.
No domingo (21), ela foi localizada pela reportagem e fez breve manifestação sobre o caso:
— Estou passando por um momento difícil, proibida pelo hospital de aplicar o medicamento nos pacientes, a menos que o faça de forma particular. Mas não sou eu o tema, são os pacientes, que estão se beneficiando por isso. É para o bem deles. Não ganho nada com isso, custa R$ 1,50 cada cápsula para o tratamento. Espero que os pacientes contem isso, estou deixando eles gravarem sua experiência. Depois eu falarei com mais calma.