Um silêncio colossal, estranho, tomou conta da normalmente agitada Santa Cruz do Sul. O trinado dos pássaros era quebrado apenas pelo badalar esporádico dos sinos da catedral. Nas ruas, quase ninguém – um que outro transeunte atrás de um caixa bancário.
Capital do Fumo no Brasil e uma das locomotivas econômicas gaúchas, o município parou neste fim de semana. Praças, parques, supermercados, restaurantes... tudo ficou vazio, por conta de um decreto contra a pandemia de coronavírus determinado pela prefeitura. Ele se estende das 20h de sexta-feira (5) até as 5h de segunda (8), e proíbe todas as atividades não essenciais, sob pena de multas expressivas.
As medidas foram adotadas em todo o Vale do Rio Pardo, região cujo epicentro é Santa Cruz do Sul. As regras estão entre as mais duras a vigorar no Rio Grande do Sul, ao lado das que foram impostas ao Litoral, no momento. A população chama de lockdown, embora o fechamento não seja total, como ocorre em algumas cidades da Europa. Confira o que funciona:
- Minimercados, supermercados, macroatacados, padarias, açougues puderam funcionar no sábado até as 20h. No domingo, funcionamento foi permitido somente das 7h às 12h.
- Farmácias atuaram sem restrição no sábado. Neste domingo, operam apenas por telentrega, pegue e leve e drive-thru.
- Restaurantes, trailers, food trucks, lanchonetes e lancherias puderam funcionar apenas por telentrega até as 22h. Após este horário, há tolerância de 30 minutos para o encerramento definitivo das atividades.
- Serviço de transporte coletivo urbano (ônibus) não funcionou no domingo.
- Serviço de transporte público individual (aplicativos de transporte e táxi), limitado a dois passageiros coabitantes, pode funcionar com itinerários somente para destino às atividades essenciais.
O resultado deixou a cidade irreconhecível. Quiosques e bares, que costumam lotar no verão para degustação de chope, estão de portas cerradas. Abertas, apenas farmácias, que mesmo assim atendem os clientes apenas na porta, por trás de uma fita que proíbe entrada.
– Só pegue e leve. É uma tristeza, mas as pessoas até que entendem – comenta o gerente de uma farmácia no centro da cidade, Carlos Alberto Kist.
A reportagem circulou pelos bairros e até os mercadinhos obedeceram à proibição. Sandra Lauschmier, dona do Mercado Bom Preço, que existe há 48 anos, diz que a família nunca vivenciou situação igual.
– Poucos clientes, gente com dívidas, muitos fregueses desempregados. E agora, isso: temos de fechar ao meio-dia. É uma volta à estaca zero, mas entendemos a gravidade. Só esperamos que melhore em breve – sintetiza.
A clausura é reflexo de uma palavra: coronavírus. A região está com taxa de ocupação de leitos de UTI covid na faixa de 120%, o que significa que 20% estão em camas improvisadas para acomodar pacientes em estado grave. Na quinta-feira (4), por exemplo, foram registradas cinco mortes por covid-19 em Santa Cruz do Sul. As vítimas tinham entre 57 e 82 anos. Em todo o Vale do Rio Pardo morreram 220 pessoas contaminadas pelo coronavírus em um ano de pandemia. Dessas, cerca da metade – 111 – nesses primeiros dias de 2021.
Santa Cruz nem é a cidade mais afetada na região. O município tem três hospitais. O maior, o Santa Cruz, está neste domingo com 28 pacientes em UTI (três a mais do que a capacidade) e dois doentes em espera de leito. O Ana Nery está com 12 pessoas em tratamento intensivo (capacidade máxima), e duas, à espera. O terceiro, Monte Alverne, não tem UTI.
O número de respiradores está no limite de uso. Sobraram improvisações, como respiradores de transporte e os utilizados em carrinhos de anestesia. Conforme o mapa da Secretaria Estadual de Saúde, o uso de respiradores no Vale do Rio Pardo está em 100%. Ou seja, não há mais disponíveis, apenas improvisos.
Em pior situação está a vizinha Venâncio Aires, onde o hospital São Sebastião Mártir entrou em colapso. Tem 23 leitos de UTI e improvisou outros 10, chegando a 143% de ocupação. E tem 13 leitos clínicos nominais para covid-19, mas improvisou 32 (ocupação de 246%). O diretor-técnico do hospital, médico Guilherme Fürst Neto, foi às rádios apelar para que a população não procure mais atendimento lá, porque não há como socorrer.
Só aviso: não fique doente. É situação de guerra.
GUILHERME FÜRST NETO
Médico, diretor-técnico do hospital São Sebastião Mártir
- Todos os respiradores estão em uso e temos 16 pacientes em fila de espera – declarou, em nota oficial.
Ele alertou as fumageiras (processadoras de fumo, maiores empregadoras da região) para que não lotem ônibus com trabalhadores, como vem ocorrendo.
- Não temos mais remédio. E não é falta de preparo do hospital. Quase falimos. Gastávamos R$ 300 mil por mês, agora gastamos R$ 2 milhões em medicamentos. E não chega, é esgotamento total de recursos. Só aviso: não fique doente. É situação de guerra – desabafa o médico.
Os alertas vão inclusive para empresas. Uma grande fábrica de cigarros da região, a Japan Tobacco International (JTI), registrou um surto de covid-19 esta semana.
Operação Lockdown mobiliza fiscais
Em toda a região, fiscais das prefeituras abordam pessoas para evitar que passeiem ou se concentrem em locais públicos. O Parque da Gruta, um frondoso recanto em meio a um bosque muito frequentado em Santa Cruz do Sul, está fechado, assim como o Lago Dourado, outro point, situado do outro lado da cidade.
No sábado, mais de 150 pessoas foram abordadas pela Guarda Municipal, a maioria em praças e áreas nas quais a prática esportiva é comum, como na Avenida do Imigrante, no Centro. Apesar de bancos e equipamentos esportivos estarem isolados com fitas, tinha gente tentando burlar a proibição. Os agentes ressaltam que mesmo caminhadas ou passeio com animais de estimação também estão proibidos.
Primeiro é dada uma orientação. Caso o infrator reincida, as multas variam de R$ 300 a R$ 3 mil, a depender das circunstâncias e da gravidade do fato. Até sábado (6), já tinham sido aplicadas 14 multas administrativas, referentes à circulação por motivo não essencial, circulação sem uso de máscara e funcionamento irregular de estabelecimentos.
As autoridades santa-cruzenses deram um nome sugestivo a sua ação, Operação Lockdown. No sábado fecharam uma boate situada à beira da estrada que liga Santa Cruz a Venâncio Aires, onde 10 pessoas se aglomeravam.
Os últimos números contabilizam 58 denúncias recebidas desde o início da fiscalização, além de 14 autos de infração administrativa aplicados, seis infrações de trânsito, oito boletins de ocorrência registrados e uma prisão em flagrante.
A alegria de sair vivo do hospital
Na tarde de domingo (7) a reportagem de GZH flagrou uma cena comovente no hospital Ana Nery, um dos maiores de Santa Cruz do Sul. Familiares abraçavam, chorando, um paciente que deixava o local de tratamento de covid-19, após uma semana de internação.
O alvo das atenções era o tenente Mauro Oliveira, do 23º Batalhão de Polícia Militar. Ele não sabe como contraiu o coronavírus, mas ressalta que sua atividade é de muito contato com colegas e povo em geral.
- Só sei que tive febre, dor de cabeça e muita falta de ar. Vim consultar no hospital e já fiquei internado. Tive de usar respirador, mas não cheguei a ser entubado. O atendimento é muito bom, excepcional, só tenho a agradecer – comentou, entre lágrimas, ao deixar o hospital.
Os familiares abraçaram Oliveira, tiraram fotos, ergueram mãos aos céus em gratidão. Eles contabilizam quatro contaminados pela covid-19 na família, todos homens. Mesmo com uso de máscara e pouca exposição, garantem:
- Agora, é tocar a bola pra frente e prestigiar essa gente da área de saúde, que merece – comemora o tenente.