A Polícia Civil e o Ministério Público abriram investigações para apurar a conduta da médica Eliane Scherer e as circunstâncias dos três óbitos registrados nesta semana no Hospital Nossa Senhora Aparecida, em Camaquã. As mortes ocorreram após a profissional aplicar um tratamento experimental com nebulização de hidroxicloroquina diluída em pacientes infectados pela covid-19, técnica que não é prevista nos protocolos médicos e que causou reações adversas nos enfermos, como taquicardia e queda de saturação (oxigênio no sangue). A apuração da Polícia Civil é na esfera criminal e a do Ministério Público, na cível.
A delegada Geórgia Malafaia, titular da Delegacia de Pronto-Atendimento (DPPA) de Camaquã, explica que o inquérito está em fase inicial. Ela tomará depoimentos de funcionários e médicos do hospital, de familiares de pacientes que faleceram e fará análise de prontuários clínicos para avaliar a evolução dos doentes.
— Vamos apurar se ela (médica) fez aplicações de forma adequada e se ela tinha o domínio total desse método que decidiu adotar. Se ela não tem o domínio, isso pode eventualmente caracterizar imperícia. Vamos procurar saber como surgiu a ideia desse tratamento, se foram os familiares que pediram ou se foi a médica que incentivou — diz a delegada.
A titular da DPPA afirmou que o objetivo da investigação é averiguar se houve “negligência” ou “imperícia” que possam ensejar uma infração penal. A delegada informou que, com os elementos até agora inclusos no inquérito, “não há indício de infração penal”.
No MP, a apuração é na área cível e ficará sob responsabilidade da promotora de justiça Fabiane Rios, da comarca de Camaquã. A investigadora já tinha recebido documentos do próprio hospital, que decidiu denunciar às autoridades supostas 17 infrações éticas cometidas pela médica Eliane.
— Foi instaurado expediente investigatório para verificar se os procedimentos adotados estão dentro dos protocolos e da ética profissional. A investigação será de oitiva de pessoas envolvidas, protocolos adotados, de acordo com o Ministério da Saúde. Constatada eventual falta, será encaminhada na esfera cível e administrativa. Se for provada imperícia da médica ao adotar o procedimento, causando óbito de pacientes, a conduta será apurada na esfera criminal (também no MP, neste caso) — diz a promotora, que está trabalhando em conjunto com a Polícia Civil.
Eliane era contratada para atuar no pronto-socorro do hospital e foi demitida em 10 de março. A direção justificou a decisão por conta dos tratamentos experimentais, pela inobservância de protocolos e pelos supostos atritos com os médicos que atuam nos leitos clínicos e na UTI, os quais não concordavam com os métodos da profissional.
Mesmo após desligada, Eliane continuou atendendo alguns pacientes na instituição, na ala privada, e também aqueles que conseguiram decisão judicial ou assinaram termo de conciliação para receber a nebulização de hidroxicloroquina.
Nesta semana, dos quatro pacientes que estavam sob assistência de Eliane, três faleceram. Um deles tinha quadro estável, sem necessidade de entubação ou UTI, e acabou morrendo horas após o procedimento. Os outros dois estavam em situação grave, entubados, e tiveram reações adversas depois das inalações.
A direção do hospital, em manifestação oficial, disse que não poderia conectar diretamente os óbitos às sessões de nebulização, mas assegurou que o tratamento experimental estava contribuindo para a “piora” do quadro de saúde dos pacientes com a apresentação de reações adversas.
O Hospital Nossa Senhora Aparecida permite, nos seus protocolos, a prescrição da hidroxicloroquina via oral, mas a nebulização da substância diluída não é prevista na literatura médica. Não há comprovação científica de eficácia do fármaco no combate à covid-19 e médicos alertam para os riscos de efeitos colaterais.
A reportagem tenta obter manifestação de contraponto de Eliane desde a quarta-feira (24), mas não houve retorno até o momento.