O relacionamento de quase oito anos começou em Serafina Corrêa, onde os dois se conheciam da vizinhança, quando Sheila Nascimento Meireles Mascarenhas convidou Luís Magnário da Costa Vieira para tomar um vinho. Não se separaram mais. Decidiram juntos a mudança para Porto Alegre, com foco em oportunidades de emprego. Ela ganhou experiência como atendente de farmácia, e ele começou dirigindo um caminhão e recolhendo material para um ferro-velho.
Certo dia, ao voltar para casa, Luís comentou com a esposa que tinha observado um casal bem-vestido na rua, cena que motivou o comentário resignado de um colega – aquele padrão não era algo que eles, lidando com sucata, pudessem almejar. Formada em um curso técnico de Administração, Sheila decidiu que, do casal, quem deveria investir na formação seria o marido:
— Vamos dar um jeito. Você vai voltar a estudar.
Luís não havia concluído a escola. Sheila o matriculou em um supletivo e só depois o comunicou sobre a novidade. Em sete meses, estava concluído o Ensino Médio. No final de 2018, ele se inscreveu em dois vestibulares para Jornalismo. Matriculou-se na UniRitter e, para dar conta das mensalidades, começou a trabalhar como motorista de aplicativo, compartilhando o veículo com um colega, que não demorou a ser baleado.
A gente comemorou tanto. Quando saí do banco com o contrato assinado (para o Fies), mandei um áudio e uma foto. Em casa, ela me abraçava, me beijava, o cachorro pulava. Foi o começo do sonho dela sendo realizado.
LUÍS MAGNÁRIO DA COSTA VIEIRA
Marido de Sheila
Sheila não admitiu que Luís mantivesse atividade tão arriscada. Pediu que ele desistisse das corridas e focasse apenas na faculdade. Mesmo com ele fazendo bicos em eventos, o orçamento doméstico não comportou o pagamento das parcelas do sonho de Sheila, que era ver o marido com o diploma de Ensino Superior. Luís trancou a matrícula e passou a assistir a cursos online de fotografia, sempre pagos pela esposa.
— Estuda! Estuda — incentivava ela.
Com a nota obtida no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ele se tornou aluno da ESPM, por meio do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). O salário de Sheila na farmácia vinha sendo complementado com o auxílio emergencial do governo federal, para o qual Luís se cadastrou.
— A minha felicidade era ver o olho dela brilhando. A gente comemorou tanto. Quando saí do banco com o contrato assinado (para o Fies), mandei um áudio e uma foto. Em casa, ela me abraçava, me beijava, o cachorro pulava. Foi o começo do sonho dela sendo realizado — recorda o universitário de 32 anos.
Na casa alugada na Vila Ipiranga, na Capital, Sheila organizou o espaço que se transformaria na sala de aula improvisada do marido. Antes de sair para pegar o ônibus que a levaria até o Centro, ela preparava uma torrada para ele. Questionava se havia algum material para leitura que ela pudesse imprimir durante o dia. Ao final do expediente, Sheila voltava lendo os conteúdos indicados nas aulas de jornalismo de Luís. Ela puxava um banquinho para perto do computador, queria saber o que ele estava fazendo.
Luís assistiu à primeira aula da nova graduação em 24 de agosto. Em decorrência de complicações cerebrais, a atendente, que trabalhava em uma farmácia do Centro onde houve casos de coronavírus entre os funcionários, testando positivo ela também para a covid-19, morreu menos de um mês depois, em 16 de setembro, aos 39 anos.
Os sinais da infecção começaram com cansaço e vômitos. Com o passar dos dias, ela foi piorando, enquanto o casal peregrinava por diferentes hospitais e unidades de pronto-atendimento (UPAs) – no total, foram nove atendimentos. Depois de ter convulsões, Sheila foi internada e transferida de instituição, até falecer. Chamado pelos médicos, Luís teve a chance de se despedir da companheira, desacordada.
— A gente vinha numa construção de melhora, numa sequência de coisas boas. Ela era companheira para tudo — descreve o viúvo, que pretende voltar ao mercado de trabalho e continuar frequentando o curso. — Como vou pagar, é uma incógnita. Quero ser fotógrafo. Tenho que fazer isso por nós.