Conteúdo verificado: postagem no Facebook afirma que a China comprou vacina da Suécia para aplicar nos chineses, enquanto vendeu para o Brasil os imunizantes desenvolvidos na Ásia
Uma publicação distorce informações sobre as negociações para aquisição de vacinas contra a covid-19 sugerindo que há algo de errado com os imunizantes desenvolvidos por empresas chinesas, já que um laboratório do país fechou acordo com a AstraZeneca, empresa parte britânica e parte sueca, para que a China receba 100 milhões de doses do composto desenvolvido em parceria com a Universidade de Oxford, caso ele se prove eficaz para combater a doença. O post questiona por que os chineses estariam em busca dessas vacinas enquanto vendem os seus produtos para o Brasil.
Apenas uma das 13 vacinas desenvolvidas por chineses tem acordo para distribuição no Brasil: a CoronaVac, da Sinovac Biotech. O acordo com o governo de São Paulo prevê a importação de 60 milhões de doses, mas também que a tecnologia será transferida para o Instituto Butantan, que produzirá a vacina no país. Até dezembro deste ano, o Butantan pode produzir até 40 milhões de ampolas.
O conteúdo verificado desconsidera ainda que a China já concedeu autorização especial para que as vacinas da Sinovac e da Sinopharm — ambas desenvolvidas lá — sejam aplicadas na população do país considerada de alto risco, caso dos médicos e profissionais de saúde. O material não leva em conta, também, que vários países têm buscado diversificar seus fornecedores de vacinas.
A China não é o único país que desenvolve vacinas contra covid-19 a comprar imunizantes produzidos por outras nações. Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, têm, cada um, acordos com seis diferentes fornecedores de vacinas contra coronavírus, segundo levantamento do jornal Financial Times. Como ainda não é possível saber quais das 42 vacinas em fase de testes serão eficazes para imunizar o vírus, o país que conseguir fechar acordos de fornecimento com mais de uma empresa farmacêutica tem mais chances de ter um imunizante eficiente disponível para sua população, mesmo que um deles não seja aprovado.
A publicação também desconsidera que 12 das 13 vacinas desenvolvidas por empresas ou institutos de pesquisa chineses foram aplicadas primeiro em cidadãos da própria China, em suas fases 1 e 2 de testes em humanos. A Coronavac, vacina da Sinovac que está sendo testada no Brasil em conjunto com o Instituto Butantan, veio realizar a fase 3 do ensaio clínico na América do Sul porque, na época, o número de novos casos na China havia caído substancialmente, o que tornaria difícil saber se as pessoas não se infectaram por causa do imunizante ou simplesmente porque não tiveram contato com o vírus.
Como verificamos?
Para essa verificação, primeiramente buscamos por notícias sobre acordos feitos pela China com laboratórios de fora do país para negociar a pré-aquisição de doses de vacina contra a covid-19. Também buscamos matérias detalhando as negociações entre os países e fornecedores de imunizantes. Ao ver que alguns países estavam trabalhando para diversificar os seus fornecedores de vacinas, procuramos a imunologista Viviane Boaventura (Fiocruz) e o epidemiologista Eduardo Martins Netto (UFBA) para entender a estratégia por trás dos acordos prévios para a compra desses produtos com mais de um fornecedor.
Depois, buscamos na lista da Organização Mundial da Saúde (OMS) todas as 42 vacinas contra o novo coronavírus que já estão em estágio de ensaio clínico. Elas foram desenvolvidas por 74 empresas ou institutos de pesquisa. Procuramos os sites de cada uma dessas companhias ou entidades para saber quais delas eram chinesas e se tinham relações conhecidas com o governo chinês. Depois que encontramos 13 vacinas com a participação de instituições chinesas, usamos o banco de dados da OMS para ver em que país foram realizados os testes clínicos de cada um desses imunizantes.
Por fim, procuramos a autora da postagem, que não respondeu até a publicação desta verificação.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 7 de outubro de 2020.
Verificação
Acordo com a AstraZeneca
Em agosto, a AstraZeneca, uma empresa parte sueca, fechou um acordo com o laboratório chinês Shenzhen Kangtai Biological Products para produzir 100 milhões de doses por ano da vacina contra a covid-19, desenvolvida junto com a Universidade de Oxford. A produção ainda depende da comprovação da eficácia da vacina, atualmente em fase 3 de testes – o último estágio dos ensaios clínicos que envolve milhares de voluntários.
Esse, porém, não é o único imunizante no radar do governo chinês. Desde julho, a TV estatal chinesa informou que vacinas experimentais estavam sendo administradas em grupos de risco, como profissionais de saúde. Esses imunizantes foram desenvolvidos por companhias chinesas, de acordo com a CCTV. Os nomes dos laboratórios não foram especificados na época. Mas várias vacinas passaram por fases anteriores de testes na China, incluindo a CoronaVac, que está realizando a sua fase 3 no Brasil em parceria com o Instituto Butantan.
No mês passado, a chefe de biossegurança do Centro de Controle de Doenças e Prevenção chinês, Wu Guizhen, anunciou que o país pode ter uma vacina contra o coronavírus disponível para o público em novembro. Ela não explicou, porém, a qual vacina se referia. Vacinas da Sinovac e da Sinopharm já receberam uma aprovação para uso especial no país por pessoas que são grupos de alto risco, como médicos e profissionais de saúde.
Além disso, as vacinas da AstraZeneca, por si só, não seriam suficientes para imunizar a população chinesa. O acordo prevê a produção de 100 milhões de doses em um ano e a China tem uma população de quase 1,4 bilhão de pessoas.
Diversidade de fornecedores
Países têm apostado em diversificar seus fornecedores de vacina, segundo levantamento do Financial Times. Os Estados Unidos e o Reino Unido pré-encomendaram vacinas de seis fornecedores. O Canadá e o Japão encomendaram imunizantes de quatro laboratórios. A Austrália, a Índia e o Brasil fizeram compra antecipada de doses de dois fornecedores. Além da CoronaVac, o Brasil fechou um acordo com a AstraZeneca para produção dos imunizantes.
No caso da CoronaVac, o governo de São Paulo informa que 60 milhões de doses serão importadas da China e, desde que seja comprovada a eficácia, serão distribuídas gratuitamente à população através do Sistema Único de Saúde (SUS). Mas não só. O acordo também prevê que a Biovac transfira para o Brasil a tecnologia para que o Instituto Butantan seja capaz de produzir os imunizantes em território nacional. Até dezembro deste ano, o governo paulista espera receber 6 milhões de doses da Sinovac e produzir outras 40 milhões no Butantan, segundo uma matéria da BBC News Brasil. O objetivo é imunizar toda a população do Estado.
O Brasil também aderiu à Covax, uma coalizão global para a compra e distribuição de vacinas contra a covid-19 que está sendo liderada pela Gavi (aliança para a vacinação mundial da Fundação Bill e Melinda Gates) e pela OMS. A meta da Covax é viabilizar a compra de 2 bilhões de doses até o final de 2021.
Para o professor Eduardo Martins Netto, que é médico-epidemiologista do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes) e chefe do Laboratório de Pesquisa em Infectologia na mesma unidade, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), além de coordenador do Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Bahia (Famed), é normal que os países busquem, neste momento, uma diversidade de fornecedores de vacinas.
— Não existe ainda nenhuma vacina licenciada em nível mundial. Só existe investigação, pesquisa para vacina. Os países estão diversificando os possíveis fornecedores. Isso é muito natural, porque se você não tem nada, você pode comprar de uma determinada fábrica ou de outra. Você pode dizer: "olha, se essa vacina não deu certo, não protegeu, tem uma perspectiva para outra vacina" — aponta.
Para o epidemiologista, o que os países podem fazer, neste momento, é se comprometer a comprar uma vacina, se ela funcionar.
— Já houve investimento em fábricas, como Butantan, Manguinhos, que investiram em aumentar as instalações para produção da vacina — completa.
Pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e professora de Imunopatologia da Faculdade de Medicina da Bahia (Famed/UFBA), a imunologista Viviane Boaventura explica que “há normas de ética e boas práticas em pesquisa clínica que tornam necessário que as primeiras etapas de estudos de desenvolvimento de medicamentos e vacinas sejam testadas necessariamente no país que desenvolveu”.
Sobre a diversidade de fornecedores, ela disse acreditar que os países possam, sim, comprar de outros.
— Mesmo porque devem ser tecnologias diferentes e podem facilitar a produção e distribuição para um grande número de pessoas. Pode ser o caso — sugere.
Testes na China
Segundo o levantamento da Organização Mundial da Saúde, atualmente, 42 vacinas candidatas estão em ensaio clínico (isto é, sendo testadas em humanos), enquanto 151 estão em estágio pré-clínico. Entre as vacinas que já estão em teste clínico, 13 foram desenvolvidas por companhias chinesas ou institutos de pesquisa da China (veja detalhes de cada uma delas no próximo tópico).
Cidadãos chineses foram os primeiros a serem inoculados com os imunizantes desenvolvidos por empresas locais. Das 13 vacinas em fase de ensaio clínico desenvolvidas por empresas ou instituições chinesas, 12 tiveram testes realizados na própria China. É o caso das cinco vacinas que chegaram à fase 3: Sinovac, Wuhan Institute of Biological Products, Beijing Institute of Biological Products, CanSino Bio e Fosun Pharma. Todas elas tiveram suas fases 1 e 2 realizadas com voluntários chineses. Só a fase 3 foi sediada em outros países, possivelmente por causa da queda no número de infectados na própria China. Esse foi o caso da Coronavac, que veio para o Brasil quando havia poucos casos ativos entre os chineses.
— Não podemos fazer isso (os testes) quando não há casos — afirmou o presidente da Sinovac, Yin Weidong, em maio.
Os imunizantes da Anhui Zhifei Longcom Biopharmaceutical e da Chinese Academy of Medical Sciences, que ainda não chegaram à fase 3, realizaram os testes das fases 1 e 2 na China.
As vacinas da Beijing Minhai Biotechnology, da Academy of Military Medical Sciences, do West China Hospital, da Beijing Wantai Biological Pharmacy e da Walvax Biotech também recrutaram voluntários chineses para a fase 1 de testes. Elas ainda não avançaram para a segunda etapa do ensaio clínico.
De todos os imunizantes com participação de empresas chinesas, o único que não teve nenhuma fase da testagem realizada na China foi o da Clover Biopharmaceuticals. A vacina, que tem participação da empresa americana Dynavax e da britânica GSK, está realizando a fase 1 do ensaio clínico na Austrália.
Vacinas chinesas
A Sinovac é uma empresa biofarmacêutica criada em 2001 com foco no desenvolvimento de vacinas e com ações negociadas na bolsa de valores americana Nasdaq. Atualmente, a vacina está na fase 3 de testes. Ela usa o vírus desativado e exigiria a aplicação de duas doses com 14 dias de diferença entre cada aplicação.
O Wuhan Institute of Biological Products é um braço da Sinopharm, uma estatal chinesa que atua em toda a cadeia do ramo farmacêutico, incluindo desenvolvimento, produção e distribuição de medicamentos. A vacina, que usa o vírus inativo, está em fase 3 de testes e exigiria duas doses de aplicação, com intervalo de 21 dias entre cada uma delas.
O Beijing Institute of Biological Products também é uma subsidiária da estatal chinesa Sinopharm. Eles tentam desenvolver uma vacina que usa o vírus desativado e que já está na fase 3 de testes. Seria necessário tomar duas doses com 21 dias de distância entre cada aplicação.
A CanSino Bio foi fundada em 2009 e tem suas ações negociadas na bolsa de valores de Hong Kong. A vacina que eles estão desenvolvendo está na fase 3 e usa um adenovírus para estimular a resposta imune no corpo. Seria necessária apenas uma dose.
A Fosun Pharma é uma companhia chinesa fundada em 1994 com ações negociadas nas bolsas de Shanghai e Hong Kong. Ela é uma das fundadoras da Sinopharm, farmacêutica estatal, junto com a China National Pharmaceutical Group Corporation. A Fosun Pharma é uma das parceiras da americana Pfizer e da alemã BioNTech no desenvolvimento de uma vacina à base de RNA que está na fase 3 de testes. Ela exigiria a aplicação de duas doses, tomadas com uma diferença de 28 dias.
Anhui Zhifei Longcom Biopharmaceutical é uma companhia chinesa fundada em 2002 com ações negociadas na bolsa de valores de Shenzhen. A empresa desenvolve uma vacina em conjunto com o Institute of Microbiology da Chinese Academy of Sciences. O instituto surgiu em 1958. A academia data de 1949 e foi berço de parte dos projetos de planejamento de longo prazo do governo chinês. A vacina está na fase 2 e usa uma proteína como estimulante da resposta imune. Ela pode exigir duas ou três doses para ser eficaz, com 28 dias de distância na aplicação de cada uma delas.
O Institute of Medical Biology da Chinese Academy of Medical Science, uma instituição pública, foi fundado em 1958 para produzir e comercializar vacinas contra vírus. A vacina desenvolvida lá usa o vírus inativo e está na fase 2 de testes. Ela exigiria a aplicação de duas doses e 28 de intervalo entre uma aplicação e outra.
A Beijing Minhai Biotechnology é uma subsidiária da Shenzhen Kangtai Biological Products, empresa fundada em 1992 com ações negociadas na bolsa de valores de Shenzhen. A vacina usa vírus inativo e ainda está na fase 1 de testes. A aplicação pode ter 1, 2 ou 3 doses.
O Institute of Biotechnology da Academy of Military Medical Sciences, PLA of China é uma instituição pública ligada às Forças Armadas chinesas. A vacina está na fase 1 de testes e utiliza um vetor viral não replicante. Ela exigiria duas doses de aplicação, com 28 dias de diferença entre uma e outra.
A Clover Biopharmaceuticals é uma companhia chinesa, que desenvolve uma vacina em parceria com a americana Dynavax e com a britânica GSK. A vacina usa proteína para gerar a resposta imune. Ela está na fase 1 de testes e deve exigir duas doses de vacinação, com 21 dias entre as duas aplicações.
O West China Hospital da Sichuan University é uma instituição de ensino que existe desde 1892. Eles trabalham em uma vacina que está na fase 1 de testes e utiliza uma proteína para ativar a resposta imune. Ela exigiria duas doses com 28 dias de diferença entre uma aplicação e outra.
A Beijing Wantai Biological Pharmacy é uma empresa fundada em 1991 com ações sendo negociadas na bolsa de valores de Shanghai. Ela está trabalhando em uma vacina com a Xiamen University, uma universidade pública chinesa fundada em 1921. A vacina está na fase 1 de testes e usa um vetor viral republicante. Ela exigiria apenas uma dose para ser aplicada.
A Walmax Biotechnology é uma empresa chinesa fundada em 2001 que tem ações sendo vendidas na bolsa de valores de Shenzhen. A vacina está sendo desenvolvida em conjunto com a Academy of Military Sciences, ligada às Forças Armadas. Ela usa RNA e está na fase 1 de testes. A vacina exigiria duas aplicações, com 14 ou 28 dias de intervalo entre ambas.
Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Comprova verifica conteúdos suspeitos sobre a pandemia de covid-19 e sobre políticas públicas do governo federal que tenham ampla repercussão nas redes sociais. Quando a publicação envolve medicamentos ou métodos de imunização contra o novo coronavírus, a checagem é ainda mais importante porque o conteúdo enganoso pode levar as pessoas a deixarem de tomar medidas para se proteger contra a infecção.
Atualmente, as vacinas são um dos meios mais promissores para o controle definitivo da doença, que já causou 148,2 mil óbitos e infectou 5 milhões de pessoas apenas no Brasil, de acordo com o painel do Ministério da Saúde.
O mesmo conteúdo foi verificado por Aos Fatos, que classificou de distorcido, pelo Estadão Verifica, que apontou como enganoso, e pelo Boatos.org, que tratou como um boato. A publicação no perfil pessoal do Facebook que foi verificada aqui teve mais de 41 mil compartilhamentos. O texto teve 9,4 mil interações na rede social, após ser compartilhado por páginas de apoio ao presidente Jair Bolsonaro, segundo a ferramenta de monitoramento CrowdTangle. O presidente disse, em setembro, que não podia obrigar ninguém a tomar a vacina, embora uma lei assinada por ele em fevereiro preveja a possibilidade de vacinação compulsória contra coronavírus, como mostrou o Comprova.
O Comprova verificou recentemente publicações que tentavam desacreditar a importância da imunização, mostrando que as vacinas não vão ser usadas para monitorar a população, não causarão danos irreversíveis ao DNA, nem poderão rastrear as pessoas. Desde o início da pandemia, o Comprova também verificou peças de desinformação sobre a China, como a de que o país contaminou máscaras, que as principais cidades chinesas não tiveram casos de covid-19 e que o novo coronavírus teria sido criado num laboratório chinês.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo que usa dados imprecisos; ou que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras.
Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance.
Este conteúdo foi investigado por Jornal Correio e Jornal do Commércio e verificado por Folha, GZH, O Povo, Piauí e Poder360.
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