Conteúdo verificado: Postagem de Arthur Weintraub no Twitter mostrava o resultado de um estudo que afirmava que países que usaram a hidroxicloroquina tiveram 75% menos mortes.
Um estudo sobre o uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 usa dados e informações incorretas para concluir que países que usaram a droga tiveram 75% menos mortes. Tanto a hidroxicloroquina quanto a cloroquina não possuem eficácia comprovada contra o novo coronavírus. Os dados foram compartilhados no Twitter por Arthur Weintraub, antigo assessor especial do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e irmão do ex-ministro da Educação Abraham Weintraub.
Para atingir os resultados, os responsáveis pelo estudo excluíram países que adotaram as medidas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como distanciamento social e o uso de máscaras. Os autores, que não se identificaram, também manipularam termos científicos e editaram o texto da pesquisa sem sinalizar aos leitores.
— A quantidade de variáveis confundidoras é tão grande que esse desenho de estudo é inadequado para abordar essa pergunta científica (se a cloroquina é eficaz como tratamento precoce). A forma adequada e com menor risco de ruído de variáveis confundidoras é fazer um estudo clínico randomizado (quando um grupo aleatório toma o remédio e outro grupo, um placebo) — explica Letícia Kawano-Dourado, pneumologista e pesquisadora da Universidade de Paris, na França.
Como verificamos?
A publicação de Arthur Weintraub levava para um tuíte da médica Simone Gold, que havia colocado o link de uma notícia do site norte-americano de extrema-direita WND, publicação que possui histórico de notícias falsas. Ao acessar a matéria, encontramos o link do estudo que embasou a publicação.
Procuramos pelos autores no site HCQTrial.com, mas, na página de “perguntas frequentes”, eles afirmam que querem seguir anônimos. Ainda assim, enviamos uma mensagem no campo de “feedback” e não tivemos retorno.
Na sequência, procuramos no Google reportagens que tivessem relação com o que foi publicado na página do estudo. Encontramos um texto de David H. Gorski, pesquisador e médico oncologista da Universidade Wayne State, nos Estados Unidos, com longas críticas ao artigo. Também encontramos a conta do Twitter do biologista Carl Bergstrom, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. Ele também fez críticas ao estudo.
Depois, entramos em contato com o infectologista Gerson Salvador, da USP. Ele analisou parte do estudo e nos indicou a médica Letícia Kawano-Dourado, pneumologista e pesquisadora da Universidade de Paris. As duas entrevistas foram feitas por WhatsApp.
Tentamos contato com Arthur Weintraub, mas não tivemos resposta.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 30 de setembro de 2020.
Verificação
O estudo e suas limitações
O site HCQtrial apresenta sua análise como um “estudo randomizado de países”. A proposta é comparar a mortalidade (óbitos por milhão) da covid-19 entre diferentes grupos de nações, a depender do uso de hidroxicloroquina no combate à doença. De acordo com os responsáveis, países que adotaram “amplamente” a substância como “tratamento precoce” têm taxa 73,1% menor que as nações onde o uso precoce da medicação foi limitado. Os números foram atualizados pela última vez em 27 de setembro, três dias depois da publicação de Weintraub.
— Eles não randomizaram ninguém. Randomizar é sortear um indivíduo ou um hospital, por exemplo, para receber uma intervenção. O estudo deles não sorteou ninguém, apenas analisou o que aconteceu. É um estudo observacional, com todos os vieses dos estudos observacionais — explica Letícia Kawano-Dourado.
Os pesquisadores não detalham o que seria o tratamento precoce ou tardio, quais os protocolos utilizados por cada país nem há quanto tempo cada tipo de procedimento foi adotado. Eles excluíram países com menos de 1 milhão de habitantes e em que menos de 0,5% da população tenha mais de 80 anos. De acordo com os pesquisadores, também ficaram de fora países que adotaram rapidamente o uso de máscaras e estratégias de isolamento, afirmando que nesses casos “há baixa dispersão do vírus no momento”.
O Brasil, por exemplo, não foi considerado na análise, apesar de ser o 2º com mais mortes por covid-19 e estar entre os cinco países onde há mais óbitos por milhão de habitantes. O HCQtrial justifica a exclusão pelo “uso muito variado” da hidroxicloroquina durante o surto no país. Desde maio, o governo brasileiro permite a administração de cloroquina para o tratamento de casos leves da doença.
O médico David H. Gorski, que analisa pesquisas “pseudocientíficas” há cerca de 20 anos, e o biologista Carl Bergstrom, da Universidade de Washington (EUA), são alguns dos especialistas que criticam severamente o artigo do HCQtrial.
De acordo com ambos, o problema começa já na caracterização da análise. Gorski explica o funcionamento dos estudos randomizados:
— Por exemplo, se você quiser determinar se a droga X pode servir de tratamento para a condição Z, a forma clássica seria aleatoriamente escolher indivíduos com essa condição para receber ou a droga X ou um placebo (grupo de controle). Idealmente, o estudo seria duplamente cego: nem os voluntários nem os pesquisadores saberiam quem está recebendo o quê.
O médico ressalta ainda que, nesse tipo de teste, os participantes aderem ao estudo antes de o tratamento ser administrado e que existe um esforço para manter o mesmo tamanho e características entre os dois grupos que serão analisados.
— Nenhuma dessas características se aplica ao estudo do HCQTrial. Não há como alguém ‘randomizar’ países para usar ou não determinada substância. Não faz sentido — explica Gorski.
Bergstrom acrescenta que a caracterização de “estudo randomizado de países” parece ter sido inventada para essa pesquisa específica, “feita para confundir”.
— Se você não sabe nada sobre epidemiologia, essa caracterização pode soar razoável e te levar a concordar com a conclusão — complementa Gorsk.
Ele ressalta ainda que a análise não considera sequer os diferentes usos da substância em um mesmo país.
Gorski e Bergstrom também constataram que o texto do artigo muda com frequência, sem sinalizar as edições aos leitores. Por exemplo, em determinado momento, o HCQTrial afirmou que cerca de 2,7 bilhões de pessoas fazem parte do grupo de tratamento. Até a publicação deste texto, a amostra foi reduzida e está em 1,8 bilhão.
A nomenclatura dá a entender que 1,8 bilhão é a quantidade de pessoas sujeitas ao uso da cloroquina contra a covid-19, quando, na verdade, é a população somada dos países onde a substância é aceita amplamente como tratamento precoce. Não há indicação de quantas pessoas efetivamente usaram o medicamento em nenhum dos dois grupos analisados.
Autores anônimos
Não é possível saber quem está por trás dos sites C19Study.com, C19HCQ.com e HCQTrial.com, que compõem o grupo verificado. Na página “perguntas frequentes”, a explicação seria um possível medo de retaliação.
“Somos pesquisadores PhDs, cientistas e pessoas que esperam dar uma contribuição, mesmo que pequena. (…) Temos pouco interesse em aumentar nossas listas de publicações, estar no noticiário ou na TV (já fizemos todas essas coisas antes, mas sentimos que há coisas mais importantes na vida agora)”, informa a página citando possíveis casos de ameaças a Didier Raoult e Simone Gold, médicos defensores do uso da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19.
Didier Raoult foi responsável por publicar em março um estudo afirmando que o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. A pesquisa foi alvo de críticas da revista Science, referência em estudos científicos, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos.
Simone Gold é uma médica norte-americana. Em suas redes sociais, ela costuma postar diversas matérias em defesa da hidroxicloroquina. Algumas delas possuem alerta de conteúdo falso pelo Instagram.
A postagem de Arthur Weintraub teve como base um tuíte de Simone Gold, que continha um link que levava para uma matéria sobre o site HCQTrial. Tentamos contato com o ex-assessor especial de Jair Bolsonaro (sem partido), mas não obtivemos respostas.
— Alguém trabalhou muito nesse falso relatório, e é alguém que não quer ser identificado. Não apenas não há autores ou entidades listadas, como a informação sobre o registro do site está protegida. Isso - junto com a análise terrivelmente enganada - deveria ser uma enorme bandeira vermelha — criticou o biologista Carl Bergstrom.
O grupo responsável pelo site HCQTrial.com mantém uma conta no Twitter com pouco mais de 3 mil seguidores, também sem identificação alguma sobre seus autores. Na página, costumam publicar textos defendendo a hidroxicloroquina.
O infectologista Gerson Salvador aponta a ausência de informação dos autores como um dos problemas presentes no site.
— Saltam aos olhos quatro coisas: 1) não haver descrição da metodologia, 2) não haver exposição de quem são os investigadores, 3) não haver menção de submissão a comitê de ética e 4) o produto estar publicado no próprio site do projeto ao invés de uma plataforma científica — afirma.
Cloroquina e hidroxicloroquina
A ideia de que a cloroquina e a hidroxicloroquina pudessem ser prescritas para pacientes infectados pelo novo coronavírus surgiu por causa de uma pesquisa de 2005, que indicava efeitos positivos contra outros tipos de coronavírus em laboratório. Mas os testes em humanos nunca aconteceram.
Em junho, a Organização Mundial da Saúde suspendeu em definitivo os testes com as duas drogas. Os testes feitos pela entidade mostraram que as substâncias não reduzem a mortalidade em pacientes internados com a doença.
Estudos realizados de acordo com o padrão ouro para pesquisa com medicamentos — que exige testes com grupos de controle e o uso de placebos — publicados no Journal of the American Medical Association (Jama) e no British Medical Journal (BMJ) apontaram que pacientes tratados com cloroquina e hidroxicloroquina não tiveram melhores resultados que aqueles que não receberam os mesmos remédios. Uma pesquisa realizada em 55 hospitais brasileiros e publicada no New England Journal of Medicine (NEJM) chegou às mesmas conclusões.
Cloroquina no Brasil
O uso da cloroquina e da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19 é amplamente defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Mesmo as drogas não tendo comprovação científica, em março, ele ordenou que o Laboratório do Exército produzisse os medicamentos.
A pressão para que as substâncias fossem adotadas custou o cargo de dois ministros da Saúde: Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich. Desde que assumiu a função interinamente, Eduardo Pazuello alterou o protocolo do Ministério da Saúde e ampliou a possibilidade do uso dos medicamentos para pacientes com sintomas leves – até então, eram recomendados apenas em casos graves e com monitoramento em hospitais.
Por que investigamos?
A terceira fase do Comprova verifica postagens suspeitas envolvendo a pandemia da covid-19 e políticas públicas do governo federal. A publicação de Arthur Weintraub no Twitter teve, até o fechamento deste texto, 7,5 mil interações, entre curtidas, compartilhamentos e comentários.
Postagens como essa são perigosas porque alimentam a esperança da população em um remédio que não tem eficácia comprovada no tratamento de uma doença que não tem cura e já matou mais de 1 milhão de pessoas no mundo e mais de 143 mil no Brasil. Além disso, a hidroxicloroquina possui efeitos colaterais, que podem ser prejudiciais sem um acompanhamento médico.
O Comprova já verificou outros conteúdos envolvendo estudos sobre a hidroxicloroquina. Mostramos que um artigo belga não comprovava a eficácia da droga no tratamento precoce da covid-19, assim como pesquisadores de um estudo italiano não propunham o uso da hidroxicloroquina no tratamento da doença.
Falso, para o Comprova, é o conteúdo inventado ou que tenha sofrido edições para mudar o seu significado original e divulgado de modo deliberado para espalhar uma mentira.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras.
Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance.
Este conteúdo foi investigado por Poder360 e UOL e verificado por A Gazeta, Estadão, Folha, GZH, Jornal Correio, Jornal do Commércio e Piauí.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).