Conteúdo verificado: artigo no site Conexão Política afirma que estudo italiano feito entre fevereiro e maio com cerca de 3,4 mil pacientes apontou risco de morte 30% menor em quem foi recebeu hidroxicloroquina.
É verdadeira a publicação do site Conexão Política que descreve um estudo realizado por pesquisadores italianos que observou uma taxa menor de mortalidade nos pacientes hospitalizados com covid-19 que tomaram hidroxicloroquina.
Ainda que as informações estejam de acordo com o que foi publicado no estudo, a pesquisa não traz nenhum dado conclusivo sobre a eficácia da hidroxicloroquina. Por se tratar de um estudo observacional, não foi oferecido placebo para o grupo de controle, o que permitiria comparar os resultados dos dois grupos. A pesquisa também não seguiu o modelo duplo cego randomizado, em que os participantes de um grupo que recebe o remédio e do grupo de controle são sorteados aleatoriamente, para evitar que fatores externos, como idade, influenciem nos resultados.
Estudos observacionais podem apontar possíveis tratamentos a serem estudados mais a fundo, mas não permitem atestar a eficácia de drogas. A própria conclusão do estudo italiano traz ressalvas sobre a aplicação prática de seus resultados. Além disso, pesquisadores brasileiros ouvidos pelo Comprova destacaram que o estudo italiano tem uma série de limitações e não acrescenta novidades na literatura já disponível sobre o medicamento.
O site brasileiro erra ao afirmar que os autores do estudo propõem o uso da hidroxicloroquina para tratar pacientes com o novo coronavírus, o que não condiz com os resultados da pesquisa. O artigo científico italiano afirma somente que os dados do levantamento “não desencorajam” o uso da droga.
Tentamos contato por e-mail com o Conexão Política, mas não recebemos resposta até a publicação desta checagem.
Como verificamos?
Para confirmar a existência e validade de pesquisa, recorremos à ferramenta de busca do Google. Em uma segunda etapa, acionamos pesquisadores da área da saúde para entender o peso deste estudo italiano e a credibilidade da plataforma onde as informações estão disponibilizadas.
Pedimos ajuda, ainda, a uma profissional de Farmácia para interpretar o estudo italiano. A professora de farmacologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Ana Paula Herrmann foi quem nos auxiliou.
O estudo também foi avaliado pelo médico Alexandre Naime Barbosa, chefe do Departamento de Infectologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, e pelo professor de medicina da UFRGS e chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), Eduardo Sprinz.
Por fim, buscamos informações sobre o uso da cloroquina e a da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19 em verificações anteriores do Comprova.
O Comprova fez esta verificação baseado em informações científicas e dados oficiais sobre o novo coronavírus e a covid-19 disponíveis no dia 31 de agosto de 2020.
Verificação
O texto veiculado na página Conexão Política tem como base um estudo italiano dentro do projeto CORIST (Covid-19 Risk and Treatments, em inglês, ou Covid-19 Riscos e Tratamentos, em tradução livre). A forma como os resultados da pesquisa foram retratados no texto está correta, mas a conclusão está distorcida.
O estudo italiano analisou mais de 3,4 mil pacientes hospitalizados com covid-19. Segundo os pesquisadores, o uso de hidroxicloroquina foi associado a um risco de óbito 30% menor neste grupo de pessoas. Esta é a parte do texto do Conexão Política que está fidedigna ao estudo.
O Conexão Política afirma, no entanto, que “os pesquisadores propõem que a hidroxicloroquina (HCQ) seja usada como potencial tratamento para a covid-19”, o que não é verdade. Os pesquisadores não propõem o uso da substância; apenas dizem que seus dados “não desencorajam” seu uso. Mesmo assim, fazem ressalvas.
“Na ausência de resultados claros de ensaios clínicos randomizados controlados, nossos dados não desencorajam o uso de HCQ em pacientes internados com COVID-19. Dado o desenho observacional de nosso estudo, entretanto, esses resultados devem ser transferidos com cautela para a prática clínica”, dizem.
A pesquisa italiana foi publicada em 25 de agosto no periódico European Journal of Internal Medicine e disponibilizada na mesma data no repositório Science Direct, que contempla publicações da editora Elsevier (com foco em materiais científicos). O texto do Conexão Política é datado de 26 de agosto.
Além de comparar o texto do Conexão Política com o texto original do estudo, o Comprova consultou especialistas que pudessem esclarecer a pertinência desta pesquisa para o debate sobre o uso da hidroxicloroquina.
Avaliação de especialistas
Para Ana Paula Herrman, professora de farmacologia da UFRGS, o estudo não muda nada do que se sabe sobre a hidroxicloroquina porque já há ensaios clínicos randomizados dizendo que o medicamento não funciona para pacientes internados. O estudo randomizado é considerado superior a um estudo observacional pois nele os participantes são escolhidos de forma aleatória.
— A maioria desses 3 mil e tantos pacientes que foram analisados nesse estudo observacional recebeu a hidroxicloroquina e somente 817 não receberam — afirma.
Segundo ela, no estudo observacional há fatores de confusão que podem explicar a diferença no desfecho da mortalidade.
— No grupo que não recebeu a hidroxicloroquina, os pacientes eram mais velhos. E sabe-se que, quanto mais avançada a idade, maior o risco de mortalidade por covid-19. Eles tinham mais doenças isquêmicas-cardíacas, isso também é um fator de risco. Eles tinham maior prevalência de câncer, de doença renal avançada. E os pacientes que receberam a hidroxicloroquina também receberam outros antivirais — destaca ela.
O infectologista Alexandre Naime Barbosa, chefe do Departamento de Infectologia da Unesp, também afirma que os resultados dessa pesquisa não trazem novidade sobre o que se sabe em relação à eficácia da hidroxicloroquina para o tratamento da covid-19. Segundo ele, o estudo teria sido mais eficaz se houvesse, além do grupo tratado com hidroxicloroquina, um grupo de controle tratado com placebo, se fosse um estudo “cego”, em que tanto o pesquisador quanto o paciente não podem saber o que o paciente está tomando, e se houvesse sorteio a respeito de qual paciente ficaria em cada grupo.
Segundo Barbosa, o fato de o artigo ser recente não significa que tenha mais valor.
— A última evidência não significa que mudam as coisas. Às vezes você vai publicando mais artigos, mas o assunto já está resolvido. E a hidroxicloroquina não funciona para paciente hospitalizado em enfermaria e não funciona para paciente hospitalizado em UTI. A única dúvida é para pacientes com tratamento leve. E a gente (Unesp) já está fazendo o estudo (para verificar isso) — afirma.
Eduardo Sprinz, chefe do Serviço de Infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, reforça que os artigos mais indicados são relacionados a ensaios clínicos randomizados, pois o acaso se encarrega na equiparação dos grupos.
— Um estudo retrospectivo e observacional possui inúmeras lacunas — diz.
Nesses casos, afirma ele, o “que se faz é uma série de testes matemáticos, quando possível, para tentar trazer uma semelhança entre os grupos”.
Sprinz nota, ainda, que o estudo italiano deixa em aberto questões importantes, como os motivos de uma minoria não ter recebido a hidroxicloroquina.
— O estudo não especifica quem recebeu ou não na hospitalização a medicação em estudo. Ou de que forma foram escolhidos para receberem a cloroquina. O nome disso é viés de seleção — afirma.
A hidroxicloroquina
O Comprova já mostrou em outras checagens que nem a cloroquina, tampouco seu derivado, a hidroxicloroquina, têm eficácia atestada por autoridades no combate ao novo coronavírus. Entre as verificações envolvendo esse fármacos estão a que revela que estudo da revista científica The Lancet não fez com que Estados e municípios deixassem de receitar cloroquina e a que investigou a fala do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de que a cloroquina poderia ter evitado 100 mil mortes no país.
O médico francês Didier Raoult publicou em março deste ano um estudo afirmando que o uso da cloroquina teria curado 75% dos pacientes com covid-19 em seis dias. A pesquisa foi alvo de críticas da revista Science, referência em estudos científicos, e seus resultados foram questionados e considerados incompletos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o National Health Service, do Reino Unido, abandonaram estudos com cloroquina e hidroxicloroquina. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) publicou um informe, em julho, no qual pontua ser “urgente e necessário que a hidroxicloroquina seja abandonada no tratamento de qualquer fase da covid-19” diante das evidências científicas.
Conforme a OMS, não há, até o momento, tratamento efetivo ou drogas comprovadas contra o novo coronavírus. Essa posição é ratificada por autoridades sanitárias como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a norte-americana Food and Drug Administration (FDA).
Por que investigamos?
Em sua terceira fase, o Comprova verifica conteúdos relacionados às políticas públicas e à pandemia do novo coronavírus. No caso da covid-19, mentiras e boatos que se espalham pelas redes sociais são ainda mais perigosos porque podem custar vidas. Quando se trata de medicações para o tratamento do novo coronavírus, essas verificações se tornam ainda mais importantes porque o uso de drogas sem comprovação científica pode colocar em risco a saúde dos pacientes.
Por isso, é necessário cautela ao afirmar a proposição de um tratamento, como é o caso do conteúdo analisado nesta verificação. O estudo do país europeu afirma não desencorajar o uso da hidroxicloroquina (“our data do not discourage the use of HCQ in inpatients with COVID-19”), mas não indica que o medicamento seja usado como potencial tratamento, como escreve o portal Conexão Política no trecho “ os pesquisadores propõem que a hidroxicloroquina (HCQ) seja usada como potencial tratamento para a covid-19”.
O Comprova já mostrou que, mesmo sendo adotada com ressalvas pela China, a cloroquina continua sem comprovação científica, além de não ser recomendada pela autoridade sanitária dos Estados Unidos. Também demonstrou ser enganoso que que a cloroquina seja capaz de curar 98,7% dos pacientes com covid-19.
O material verificado, que foi publicado na página Conexão Política, chegou a ser compartilhado em perfis do deputado federal Daniel Silveira (PSL). Ele teve mais de 8,3 mil interações no Facebook, segundo a ferramenta de monitoramento CrowdTangle.
Enganoso, para o Comprova, é o conteúdo retirado do contexto original e usado em outro com o propósito de mudar o seu significado, que induz a uma interpretação diferente da intenção do seu autor, ou que confunde, com ou sem a intenção deliberada de causar dano.
Projeto Comprova
Depois de um período especial de 75 dias dedicado exclusivamente à verificação de conteúdos suspeitos sobre o coronavírus e a covid-19, o Projeto Comprova começou em 10 de junho a terceira fase de suas operações de combate à desinformação e a conteúdos enganosos na internet. O objetivo da iniciativa é expandir a disseminação das informações verdadeiras.
Nesta terceira etapa, o Comprova vai retomar o monitoramento e a verificação de conteúdos suspeitos sobre políticas públicas do governo federal e eleições municipais, além de continuar investigando boatos sobre a pandemia de covid-19. Fazem parte da coalizão do Comprova veículos impressos, de rádio, de TV e digitais de grande alcance.
Este conteúdo foi investigado por GaúchaZH e Jornal do Commercio e verificado por Estadão, Folha, Gazeta e UOL.
É possível enviar sugestões de conteúdos duvidosos e que podem ser verificados por meio do site e por WhatsApp (11 97795-0022). GaúchaZH publicará conteúdos checados pela iniciativa. O Comprova tem patrocínio de Google News Initiative (GNI), Facebook Journalism Project, First Draft News e WhatsApp e apoio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). A coordenação é da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)