Um sentimento em comum conecta caçadores isolados em gélidas montanhas do Hemisfério Norte a cidadãos do mundo inteiro, inclusive de quentes cidades brasileiras: a ansiedade de voltar a conviver em sociedade após meses de confinamento.
A angústia da retomada é chamada por muitos de síndrome da cabana, que é um estado de espírito, não uma doença mental. O termo descreve o sofrimento e o tédio de quem vivencia um isolamento durante o inverno e, em seguida, o desencaixe que decorre após a retomada das atividades cotidianas e a exigência de cumprir antigas obrigações e papéis sociais.
Essa angústia, a do retorno, passa a acometer brasileiros que começam a flexibilizar o distanciamento – por obrigação ou lazer – em meio à volta dos comércios, das aulas e do trabalho presencial. Diferentemente dos eremitas das montanhas, a ansiedade em época pandêmica é reforçada porque não há vacina ou remédio e existem riscos em sair para a rua.
Entre os sintomas estão culpa ao sair, sensação de perigo iminente, problemas para dormir, perda ou aumento de fome, inquietude, irritação e angústia.
Após enfrentar um dedicado isolamento no qual trabalhava de forma remota e convivia apenas com a filha e o noivo, a professora Karin Corrêa, 49 anos, moradora de Porto Alegre, relembra o estranhamento de dois momentos marcantes nos quais pareceu voltar ao passado ao retomar ações prosaicas da vida pré-pandemia.
Para ir a uma consulta médica, meses atrás, a professora tomou um ônibus lotado do bairro Cavalhada até o Centro Histórico e vivenciou um desconforto ao locomover-se ao lado de pessoas cujo respeito às medidas de higiene e distanciamento era desconhecido. Sentiu-se uma estranha, descolada da realidade.
Quando saí para consultar, aquilo de descer do ônibus e caminhar no meio das pessoas até a Santa Casa foi algo estranho, me causou uma ansiedade. E foi horrível entrar no ônibus, ver que não tem distanciamento, as pessoas sentam do teu lado e tu não sabes se estão se cuidando
KARIN CORRÊA
Professora
— São pequenas coisas da rotina que passam a ser estranhas para ti. Quando saí para consultar, aquilo de descer do ônibus e caminhar no meio das pessoas até a Santa Casa foi algo estranho, me causou uma ansiedade. E foi horrível entrar no ônibus, ver que não tem distanciamento, as pessoas sentam do teu lado e tu não sabes se estão se cuidando — diz.
A segunda experiência se estabeleceu na semana passada, quando voltou a trabalhar nas duas escolas municipais onde atua 40 horas por semana – o retorno às aulas presenciais ocorreu por decisão da prefeitura de liberar o Ensino Fundamental. A convivência com pessoas, algo corriqueiro para ela, se tornou alvo de preocupação a ponto de imprimir em Karin sono frágil e perda da vontade de comer.
— No primeiro dia, fiquei ansiosa. Sabia que chegaria aqui, que eu e minhas colegas estariam de máscara, mas que o vírus estaria presente. Pensei: não estou preparada e não quero voltar. Realmente fiz isolamento social, fiquei todos esses meses em casa, naqueles finais de semana lindos de sol, para resguardar a mim e a outros, e agora sou obrigada a voltar a trabalhar em condições das quais discordo. Me sinto desconfortável em voltar — diz a professora.
Psicólogas entrevistadas pela reportagem afirmam que a ansiedade de Karin e de outros milhões de brasileiros é comum e compreensível: viver por meses com calça de moletom e sem se preocupar com o visual são metáforas de como, durante um tempo, vivemos sem o julgamento do olhar externo e a exigência imediata de preencher expectativas. Para piorar, apesar dos protocolos, um leve descuido pode causar uma contaminação e colocar a vida de alguém em risco.
A psicóloga Renata Baldo, do Instituto Cyro Martins, compara a situação ao passarinho que fica trancado na gaiola e, mesmo com a porta aberta, não quer sair para a liberdade. Se, em casa, o ambiente é controlado, a rua traz o imprevisto – agravado pelo coronavírus.
— A síndrome da cabana não é anormal. Ela é normal. Qualquer pessoa que fica muito tempo exposta a uma situação dessas terá dificuldade em lidar com a forma de se colocar no mundo exterior. O outro é nosso parâmetro para a vida, mas representa, também, o ambiente hostil. Precisarei sair de uma cabana que tinha começado a ficar segura — diz Renata, frisando que outra possível reação ao longo período de isolamento é a saída despudorada em bares e restaurantes, como se tudo estivesse bem.
Receios em sair de casa fazem parte da normalidade
A ansiedade e angústia de retomar algum nível de convivência devem ser encaradas como sintomas de boa saúde mental, uma vez que a pandemia não acabou e quem teme, se resguarda, observa Carmen Backes, psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa). Ela também cita que, para muitas pessoas, a ansiedade pode esconder uma angústia mais profunda: o desejo de não retomar a vida e a rotina pré-pandemia.
O caminho não é forçar a pessoa a voltar e a se sentir bem. Quando a gente é demandado a cumprir papéis sociais, uma angústia sempre se coloca, e é uma oportunidade para se perguntar que tipo de vida as pessoas querem ter
CARMEN BACKES
Psicanalista da Appoa
— O caminho não é forçar a pessoa a voltar e a se sentir bem. Quando a gente é demandado a cumprir papéis sociais, uma angústia sempre se coloca, e é uma oportunidade para se perguntar que tipo de vida as pessoas querem ter. Se conformar a uma certa imagem social sempre causa alguma reação. Por que a gente tem que se conformar a papéis sociais? A pergunta é: o que tu queres com isso? Queres a vida que tu tinhas antes? — questiona Carmen.
Assim como para grande parte das questões mentais, a fronteira entre o medo compreensível e a angústia prejudicial é quando o indivíduo passa a sofrer de forma incapacitante. Se você precisa sair de casa, mas está paralisado, talvez seja bom falar com um psicólogo. Em todos os casos, converse com amigos e familiares. E lembre-se: a pandemia não passou, portanto, ter receios em sair de casa fazem parte da normalidade.
O que fazer em relação à ansiedade de voltar a conviver?
- A pandemia ainda não acabou, então faz sentido ter receios ao sair de casa. Proteja-se da forma que puder: use máscara, reúna-se em ambiente aberto e mantenha distância
- Ao optar por sair a lazer, evite grandes grupos. Médicos recomendam que grandes reuniões não ocorram
- Discuta o incômodo com os amigos: o sofrimento compartilhado dá força ao indivíduo
- Reflita: a ansiedade deriva do medo do vírus ou de voltar à rotina pré-pandemia? Será que você não está insatisfeito em voltar a uma vida que não faz mais sentido? Talvez seja hora de promover uma mudança na vida