Uma carta aberta assinada por pesquisadores de instituições renomadas foi o estopim para reacender a discussão sobre a flexibilização do distanciamento social. No documento — que hoje já contabiliza mais de 445 mil assinaturas online da população em geral e de mais de 9 mil médicos e cientistas de saúde pública —, especialistas de Harvard, Oxford e Stanford defendem que os jovens retomem suas vidas normais.
Para embasar o pedido, os médicos alegam que o isolamento já deixou suas marcas: houve queda na cobertura vacinal da população para outras doenças, agravamento de problemas cardiovasculares e atraso no diagnóstico de outros males, como o câncer. Nos jovens, dizem os pesquisadores, o abalo pelo afastamento das atividades sociais abrange a saúde física e mental. Prova disso é uma pesquisa feita em setembro pela Sociedade Brasileira de Urologia (SBU). Ela mostrou que a pandemia e todos os seus desdobramentos resultaram na piora da saúde dos adolescentes.
Conforme o levantamento, os participantes citaram aumento de ansiedade, irritabilidade e mudanças de humor e redução nas atividades físicas. Para além de todos esses argumentos, os pesquisadores justificam que o grupo de jovens é o menos acometido com gravidade pela covid-19 e, portanto, poderia construir uma imunidade a partir da infecção natural.
Em oposição à carta, a Organização Mundial da Saúde (OMS) se pronunciou dizendo que é antiético deixar que um vírus do qual não se tem um conhecimento completo circule para que se alcance a imunidade de rebanho.
— Imunidade de rebanho é um conceito usado para vacinação, no qual uma população pode ser protegida de um determinado vírus se um limite de imunização é atingido. Por exemplo, contra o sarampo é preciso que cerca de 95% da população esteja vacinada. Os 5% restantes estarão protegidos pelo fato de que a doença não será disseminada entre aqueles que foram imunizados. Em outras palavras, imunidade de rebanho é alcançada pela proteção contra um vírus, não pela exposição a ele. Permitir que um vírus perigoso circule livremente é simplesmente antiético. Não é uma opção — enfatizou, em coletiva online, Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.
É hora do "novo normal"?
Após mais de seis meses de restrições e limitações de circulação, será que chegou, enfim, a hora de aderir ao "novo normal"? A resposta é complexa e precisa se basear em diversos fatores. O princípio básico, aponta Renato Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), é analisar em qual patamar da pandemia a região em questão está. Se houver queda sustentada de hospitalizações e de mortes, uma flexibilização para as atividades essenciais pode ser estabelecida de forma escalonada.
— Qualquer atividade deve ser sempre gradual. Não pode voltar como era antes. Volta com menos pessoas, mais distanciamento. No comércio, com menos ocupação, nas escolas também. Futebol sem torcida e assim por diante. A ideia da flexibilização é retomar as atividades com menor risco possível e menor aglomeração — diz.
Fabrizio Motta, coordenador do Serviço de Infectologia Pediátrica da Santa Casa de Porto Alegre, também é favorável à flexibilização controlada. Ele considera positivos os últimos resultados do mapa do distanciamento controlado no Estado, que, após meses, voltou a ter regiões em bandeira amarela:
— Isso é um sinal de que a explosão de casos está reduzindo. Mas, claro, não podemos considerar a abertura total, pois isso vai colocar muitas pessoas que não estavam expostas em risco e vai ter aumento de casos novamente. Porém, temos que fazer a flexibilização de alguma forma. Estamos há muito tempo fechados. Falando só na saúde, vemos atrasos em diagnósticos oncológicos, impacto psicológico no desenvolvimento das crianças, que não puderam ir para a escola nem ver os amigos.
Abertura com responsabilidade
Evitar aglomerações é o ponto crucial para reduzir a transmissão do coronavírus, afirmam os especialistas ouvidos por GZH. Dessa forma, shows com multidões ou jogos de futebol com torcida devem esperar mais tempo até a normalização completa.
— Precisa avaliar a necessidade. Escola é necessário. Futebol com torcida não é — argumenta Kfouri.
Ainda que favoráveis às liberações controladas, os médicos salientam que o fator determinante neste momento é o comportamento da população. Mais importante do que o local em que se vai é respeitar as normas de distanciamento entre pessoas e o uso obrigatório de máscara.
— Pode flexibilizar, mas teria que haver um empenho incentivando essas duas medidas: uso de máscara e distanciamento de dois metros — pondera Luciano Goldani, infectologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Ele observa que, geralmente, os jovens são os que menos respeitam as regras. Em parte, acredita, porque perceberam que a doença não os afeta com tanta intensidade como os mais idosos ou com comorbidades.
— Porém, os adultos jovens veiculam e mantêm a transmissibilidade do vírus. Se não tem conscientização, a única coisa que resta é restringir os acessos. Estamos em uma sinuca de bico. Precisamos encontrar uma forma de compreender mais e não limitar tanto. Essa será a chave para viver até 2021 — completa Goldani.
E os idosos?
Consideradas integrantes de grupo de risco para a covid-19, as pessoas com mais de 60 anos também foram duramente impactadas pelo distanciamento social. Muitas deixaram de fazer exames, pararam de ir às consultas médicas, suspenderam atendimentos essenciais, como fisioterapia, por exemplo, e até mesmo deixaram de tomar medicamentos por falta de receita. Fora isso, o afastamento da família também aumentou a ansiedade, a depressão e a dificuldade para dormir.
Diante dessas situações, também há um movimento que sugere uma flexibilização consciente para esse grupo.
— Escuto no consultório: "Não quero mais falar por telefone ou por vídeo" — conta João Senger, presidente da Sociedade de Geriatria e Gerontologia - Seção RS. — Mas como fazer isso? Com regras. Tem que flexibilizar, mas com normas e cuidados.
No caso de pessoas em Instituições de Longa Permanência para Idosos (ILPIs), Senger orienta que sempre se organize um revezamento de familiares. Ou seja, que vá uma pessoa por vez visitar o idoso. Além disso, é imprescindível a higienização dos calçados, das mãos e o uso de máscara pelo parente e pelo idoso.
— Se a instituição tiver um ambiente externo, ótimo — indica o médico.
Geriatra e paliativista do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Lucas Ramos sugere cautela na flexibilização do grupo de risco. Para ele, a liberação precisa ser bem pensada e ponderada, evitando as saídas desnecessárias.
— É preciso individualizar e ter claro o objetivo da flexibilização. O idoso que quer sair para caminhar na praça para reduzir as dores, tudo bem. Mas o "sair por sair" deve ser evitado — alerta, lembrando que, ao se exercitar nas ruas, além da máscara é importante proteger os olhos com óculos e, claro, evitar ambientes com muita circulação de pessoas.
No ambiente familiar, a sugestão é reinserir o idoso no grupo, mas sempre buscando estratégias para cuidá-lo.
— As refeições, por exemplo, eu acho complicado. Pois é quando há conversa, é um momento de proximidade e todos são obrigados a tirar as máscaras — explica Ramos.
Independentemente da situação, Senger é taxativo ao recomendar:
— O isolamento não pode ser afetivo. A parte afetiva tem que continuar. Tem que deixar claro para o idoso que o distanciamento físico é feito por uma questão de proteção, de amor.