O uso de hidroxicloroquina contra a covid-19 por parte do maior complexo hospitalar do Rio Grande do Sul, o Conceição, virou Gre-Nal. De um lado, os que se opõe a qualquer forma de utilização do medicamento para combater efeitos do coronavírus — embora o presidente da República, Jair Bolsonaro, seja defensor entusiástico dessa medicação. De outro, médicos que asseguram ser esse um bom remédio para prevenir os piores efeitos do vírus, na fase inicial da doença ou quando ela já está consolidada. No meio disso, pacientes indecisos e inseguros sobre o caminho a tomar.
Tudo começou com uma orientação repassada em junho pelo Ministério da Saúde, ao qual o Grupo Hospitalar Conceição (GHC) está vinculado. Os assessores ministeriais recomendaram o uso precoce de uma combinação de hidroxicloroquina (anti-inflamatório) e azitromicina (antibiótico) em pacientes leves de covid-19 para prevenir a chamada tempestade inflamatória característica da pior fase da doença. Tudo isso desde que os pacientes concordem e assinem termo de compromisso, informa Cláudio Oliveira, diretor-presidente do GHC.
— Como não tínhamos estoques, pedimos ao governo federal, que nos enviou. Não obrigamos, isso fica na relação de confiança médico-paciente. Até por isso, não firmamos protocolo, porque seria necessário um consenso entre os médicos, que não existe. A opinião está rachada — explica Oliveira.
O Ministério da Saúde mandou 19 mil comprimidos de sulfato de hidroxicloroquina 400 mg (forma avançada de cloroquina) fabricados pelo Exército, como antecipou o colunista Paulo Germano. São suficientes para compor, junto com a azitromicina 500 mg, 1,6 mil kits para tratar doentes. O kit com 12 comprimidos já está sendo fornecido aos pacientes, mas apenas mediante a entrega do termo e da receita médica (obrigatório para prestar contas ao Ministério), assegura a direção do GHC. A recomendação é ministrar os dois medicamentos de forma precoce, antes que o paciente seja hospitalizado.
Só que grande parte do corpo clínico do GHC se levantou contra essa hipótese (possivelmente a maioria, na estimativa de fontes ligadas ao hospital). GZH falou com quatro médicos que atuam na Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) Moacyr Scliar, porta de entrada para diagnosticar e tratar covid-19 no Grupo Conceição. Todos condenam de forma veemente o uso da hidroxicloroquina, em qualquer das fases da doença.
É uma amostra significativa dos humores entre os médicos, já que quase todos os doentes de covid-19 atendidos no GHC precisam passar pela UPA Moacyr Scliar. Eles até podem ser atendidos no Hospital Conceição, mas são canalizados à UPA. E lá o uso da hidroxicloroquina é repudiado, via de regra, informa uma médica com 10 anos de experiência naquele posto. Ela assegura que, dos 38 médicos daquela unidade de saúde, nenhum se mostrou favorável ao uso desse medicamento.
— Logo que recebemos e-mail oficial da gerência sugerindo uso da hidroxicloroquina, começou muita discussão entre os médicos. Alguns evitaram comentários, mas a grande maioria se colocou contra a prescrição dessa medicação. Não tem evidência científica de benefício aos pacientes — resume a profissional.
A médica afirma que, desde o início da pandemia, apenas três pacientes perguntaram a respeito da hidroxicloroquina e também do vermífugo ivermectina, recomendados pelo governo federal para tratar covid-19. Dois deles mostraram apenas curiosidade, mas a terceira, uma senhora idosa, queria hidroxicloroquina e se recusou a fazer teste para presença do vírus, porque “o exame vem da China comunista”.
Um outro médico da UPA garante que existe uma repulsa das equipes do GHC ao tratamento precoce com hidroxicloroquina, mesmo entre os apoiadores de Bolsonaro.
— Isso porque ficou muito clara a ineficácia da medicação — resume.
Não é o que diz, porém, um dos infectologistas de renome do GHC, o médico Renato Cassol. Ele tem recomendado o uso da hidroxicloroquina tanto na fase precoce quanto naquela em que o doente já está hospitalizado. E cita outros colegas que fazem o mesmo. A reportagem falou com mais dois médicos que recomendam o uso precoce, desde que consentido pelo paciente.
— Esse medicamento tem efeito antiviral e anti-inflamatório, ajuda no controle da infecção — assegura Cassol.
Pacientes querem “algo mais forte” que antitérmico
E o que acham os pacientes dessa discussão médica? A reportagem de GZH entrevistou, na tarde de quinta-feira (8), pacientes que procuraram a UPA Moacyr Scliar e o Hospital Conceição com suspeita de covid-19. Foram mais de 10 entrevistados e a nenhum deles foi ofertado o kit contendo hidroxicloroquina, nem receita para comprar o medicamento.
— Mandaram aguardar em casa o resultado do teste e só me receitaram dipirona e paracetamol, para diminuir os sintomas. Fiquei meio decepcionado, queria algo efetivo — descreve o almoxarife Cristian da Silva, 29 anos, morador de Alvorada, que foi atendido com falta de ar, dor de cabeça e febre.
Taís Martins, 28 anos, ajudante de lavanderia, também manifestou dor de cabeça e de ouvido. Aguarda com ansiedade o resultado do teste para covid-19 e recebeu, para tomar, dipirona e paracetamol.
— Até achei que iam me dar algo mais forte que um antitérmico, mas foi só isso — diz.
Elton Martins, 20 anos, atendente de farmácia, teve dor nas costas, dor de cabeça e diarreia. Está convencido de que pegou covid-19 pelo contato frequente com pessoas doentes. Ele também recebeu apenas medicação antitérmica, com recomendação de telefonar se o quadro se agravar. Questionados sobre o uso da hidroxicloroquina, os pacientes disseram que nem foi mencionada pelos médicos.
A favor ou contra
GZH ouviu dois médicos com posições antagônicas sobre o uso da hidroxicloroquina, tanto em forma precoce, como em casos graves.
Contra
“Resolveram desovar comprimidos sem comprovação de eficácia”
Um dos médicos veteranos na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Moacyr Scliar, com mais de 20 de profissão, está revoltado com o que chama de “empurroterapia” de hidroxicloroquina por parte do governo federal. Em entrevista a GZH, sem dar o nome (por medo de represália), falou sobre o que ele e colegas acham da medicação.
O que o senhor acha do tratamento precoce com hidroxicloroquina?
Não há qualquer comprovação de que funcione, nem de forma precoce, nem para pacientes graves. Sem falar que ela tem efeitos colaterais claros. Aliás, existem recomendações de sociedades médicas contrárias ao uso. Somos contra qualquer uso dessa droga. Por mais que desagrade ao “doutor” Bolsonaro, os profissionais têm medo de serem responsabilizados depois. Ora, se precisa de duas páginas detalhadas de termo de consentimento do paciente, por que prescrever? Nós questionamos porque isso agora. E fica claro que a questão é política.
Por que a direção do GHC disponibilizou os kits com hidroxicloroquina?
Resolveram desovar o lote gigantesco de comprimidos sem comprovação de eficácia, fabricados pelo Exército a pedido do governo. E nada melhor do que fazer isso em hospitais estatais, como os do Grupo Conceição.
A direção do GHC pressiona pela adoção da hidroxicloroquina?
Não. Ninguém nos pressionou. Só disponibilizaram, se quiséssemos usar.
A favor
“Quanto mais precoce o uso da hidroxicloroquina, melhor o desfecho”
O infectologista Renato Cassol é uma das vozes, dentro do Grupo Hospitalar Conceição, a defender abertamente o uso da hidroxicloroquina como profilático contra a covid-19. E também no tratamento dos casos graves. Isso, em combinação com outras drogas, como o antibiótico azitromicina. Em entrevista a GZH, ele fala porque recomenda o medicamento e descarta a politização do tema.
O que o senhor acha do tratamento precoce com hidroxicloroquina?
Sou plenamente a favor e recomendo aos pacientes. Existem vários estudos favoráveis, análises científicas de respeito. E quanto mais precoce o uso da hidroxicloroquina, melhor o desfecho. Ela diminui em até 30% a necessidade de internação e a letalidade. Não é questão política, é real.
Por que a direção do GHC disponibilizou os kits com hidroxicloroquina?
Porque ficou claro que esse medicamento exerce efeitos benéficos, desde que o paciente não tenha contraindicações. A hidroxicloroquina tem efeito antiviral (manifestado no início da doença) e também anti-inflamatório, contra a tempestade inflamatória que acomete doentes em estado grave. Isso está comprovado.
A direção do GHC pressiona pela adoção da hidroxicloroquina?
Não, de maneira alguma. Cabe a cada médico, junto com o paciente, a decisão. Eu recomendo a meus pacientes de consultório privado, tenho muitos. Tem tido boa aceitação.
Um negócio de R$ 9,7 milhões mensais
A hidroxicloroquina era patinho feio na indústria medicamentosa brasileira até o iníco deste ano. Era fabricada sobretudo pelo Exército, como profilático contra a malária e também no tratamento de doenças autoimunes, como o lúpus. Tudo mudou com a pandemia de coronavírus e a defesa de seu uso incondicional, feito pelo presidente Jair Bolsonaro.
Do dia para a noite, o Exército aumentou em 80 vezes a produção de hidroxicloroquina, toda ela destinada a uso público (postos de saúde e hospitais públicos ou militares). E, por estímulo de Bolsonaro, laboratórios privados também aderiram à corrida para aumentar a oferta do produto, aí para os tratamentos particulares.
A fabricação de hidroxicloroquina por parte de laboratórios privados gera um mercado de R$ 9,7 milhões mensais. Isso é uma ninharia perto dos R$ 4,7 bilhões mensais movimentado pelos fármacos em geral no Brasil _ ou seja, 500 vezes mais que o da hidroxicloroquina. Mas é sempre uma fatia mercadológica a ser disputada. Hoje quatro indústrias particulares estão autorizadas a comercializar hidroxicloroquina no Brasil. Três delas são propriedade de admiradores declarados de Bolsonaro.