Quando chegou à Unidade de Terapia Intensiva (UTI) especializada no tratamento de coronavírus do Hospital Universitário de Canoas, Arlindo Viana, 72 anos, tinha grande dificuldade para respirar. Ao longo de uma semana na qual, repetidas vezes, ficou à beira de ser entubado, ele se afeiçoou à equipe médica. O afeto foi recíproco.
Nesta terça-feira (11), ao receber alta da área mais crítica de um hospital para ser transferido a um leito clínico, onde irá se recuperar para voltar para casa, o carinho entre paciente e profissionais da saúde aflorou por meio de uma despedida afetuosa: dispostos ao longo de um corredor, os funcionários deram adeus a Arlindo com palmas, balões e cartazes nos quais se lia frases como “Palmas pela vida” e “Mais uma etapa vencida”.
Todo o ritual levou menos de dois minutos, mas tirou lágrimas de Arlindo e dos profissionais e se refletiu nos abraços coletivos entre colegas e nos sorrisos estampados nos olhos – as bocas, por força da pandemia, eram cobertas por máscara e face shield.
— Foi maravilhoso. Heróis são eles, pelo trabalho, pela dedicação, pelo carinho e pelo respeito. Não tem ninguém melhor que eles, que estão aí pelo bem — afirmou Arlindo a GZH, logo após passar pelo corredor de palmas.
Por definição, rituais demarcam o fim de uma etapa e o início de outra. Hospitais brasileiros, inspirados por ações produzidas na Itália, na Espanha e nos Estados Unidos, organizam corredores de palmas para quem tem alta da UTI para a enfermaria de leito clínico (área de menor gravidade) ou da enfermaria para casa. Em alguns casos, toca-se uma música à escolha do paciente.
Não há modelo para as despedidas: o hábito varia conforme o hospital, a proximidade do paciente com a equipe e a carga de trabalho do dia. No geral, minutos antes da alta, profissionais convocam colegas e quem está disponível entra no corredor da alegria, de um jeito bastante informal.
No Hospital Universitário de Canoas, celebrações ocorrem em casos especiais, como o de Arlindo, por quem profissionais nutriram profundo carinho, ou por Palmira Sacilotto de Oliveira, 90 anos, a paciente mais velha já tratada com coronavírus na instituição, onde ficou internada por quase um mês. Hipertensa e com insuficiência cardíaca, ela apresentou uma piora em espiral e chegou a ser tratada com cuidados paliativos na enfermaria. O filho Varlei Sacilotto, 40 anos, que fazia a vigília da mãe no hospital, chegou a conduzir videochamadas para a família se despedir da matriarca. Certa noite, chorou ao telefone enquanto falava com a irmã, Marta Rosângela de Oliveira, 53 anos:
— A mãe tá mal.
— Os médicos fazem o possível. Vamos confiar em Deus, que é maior do que tudo e faz o impossível — respondeu a irmã.
No dia seguinte, a mãe melhorou e até se sentou na cama – e o médico se impressionou com a reversão do quadro. Na tarde de uma terça-feira do fim de julho, Palmira recebeu a tão esperada alta. Foi surpreendida na saída com um corredor de palmas, balões e um "certificado" de curada.
— Muito bonito. Estava cheio de gente. Eu estava com muita vontade, queria muito voltar pra casa. Não sabia que era festa surpresa — conta Palmira, sentada ao lado da filha Marta, que, antes de passar o telefone à mãe para falar com GZH, chorou ao olhar para a matriarca curada, em casa.
UTIs sobrecarregam saúde mental
Estar em uma UTI mexe com o emocional de um paciente com coronavírus. Para além de ser tomado pelo medo e pela angústia de se confrontar com a morte, enfrenta a situação distante do amparo da família. Sem contato externo, surgem dúvidas: alguém da família se infectou? Alguém está mal? Morrerei sozinho, sem agradecer a todos ou receber uma palavra de amor?
— Pacientes sentem muita depressão, ansiedade e incerteza. No hospital, a equipe médica se torna a ligação com o mundo. Quando o paciente sai, ele se despede dessas pessoas que foram, por um tempo, sua família. As palmas são uma liberação e uma despedida: mostram que o momento dessas pessoas na vida do paciente terminou. Ao mesmo tempo, marcam que uma fase difícil passou e que é possível refazer planos para o futuro — explica a psicóloga do Hospital Conceição Eliana Bender, onde palmas são conduzidas com frequência.
As palmas para o paciente que teve alta são, de certa forma, também para a própria equipe de saúde, que vê o esforço coletivo sendo concretizado na volta de uma pessoa para casa, destaca o enfermeiro intensivista da CTI Covid do Hospital de Clínicas de Porto Alegre Ruy Barcellos. A instituição criava com frequência corredores de palmas até poucos dias atrás – agora, a frequência diminuiu porque a instituição está sempre sobrecarregada.
— De certa forma, é uma maneira de continuarmos. É uma forma de comemorar o sucesso do trabalho e os esforços de cada pessoa da equipe que atendeu o paciente — reflete.
A alta de um uma mãe e de um filho pouco antes do Dia das Mães é uma das melhores lembranças de trabalho da enfermeira intensivista do Hospital Conceição Giovana Skonieski.
— Momentos assim também nos dão esperança de que a gente vai mandar mais pessoas para casa. Trabalhar em CTI é muito cansativo, mas altas nos dão força para continuar. É muito gratificante ouvir dos pacientes o quanto foram bem tratados e amparados — diz Giovana.
No Hospital de Clínicas de Passo Fundo, via de regra todas as altas para casa contam com corredor de palmas e música ao vivo. Quem toca são voluntários, que fazem um rodízio para participar da ação.
A enfermeira Samila Livinalli guarda com carinho uma alta que teve palmas, gaita e violão. O paciente, um jovem de cerca de 20 anos, frequentara a instituição anos atrás para cuidar da mãe, já falecida. Sem parentes próximos, tratava a equipe médica, ao longo da internação por covid-19, como uma família. No momento de receber alta, revelou que queria ficar.
— Ele disse que sabia que estava curado, mas que se sentia bem e que tinha uma família no hospital. Falou que poderia ficar em qualquer cantinho porque, fora daqui, estaria sozinho. Foi a alta que mais nos tocou, foi muito dolorosa — afirma a enfermeira.
Alta dá esperança para quem fica
Para quem segue internado, o som das palmas traz força para lutar, salienta Daniela Haygert, enfermeira da UTI Covid do Hospital Conceição. Há quem pergunte: também vou ganhar aplausos? O desejo de atender a esse pedido move profissionais como Daniela. Dias atrás, uma súplica feita por uma paciente, na entrada da UTI, foi marcante.
— Me salvem, por favor. Eu tenho dois filhos pra criar — disse a mulher, apertando forte na mão da enfermeira, protegida por uma grossa luva.
Ao descrever o episódio a GZH minutos antes de sair para o hospital, Daniela pensa em voz alta:
— Se Deus quiser, farei o corredor de palmas pra ela. Sinto que os pacientes precisam muito da gente.