Por Daniel Garros e Grace van Leeuwen*
E m 1952, a epidemia de poliomielite viu o surgimento de um novo tipo de “enfermaria” em hospitais, a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Na época, o médico Bjorn Ibsen mudou a maneira como fazemos medicina com uma ideia radical: o Hospital Blegdam, de Copenhague (Dinamarca) estava tendo um número sem precedentes de pacientes mortos de insuficiência respiratória associada à doença.
O “pulmão de ferro”, uma espécie de ventilador mecânico, já estava em uso, mas os pacientes se engasgavam e aspiravam sua própria saliva ao usá-lo. O dr. Ibsen resolveu o problema fazendo uma traqueostomia – um orifício no pescoço chegando à traqueia – em uma criança de 12 anos, Vivi Ebert, e estudantes de Medicina se revezaram para ventilá-la manualmente, junto a outros pacientes nas semanas seguintes.
A mortalidade caiu significativamente, e a pequena Vivi viveu mais 20 anos, dependendo ainda de um ventilador mecânico. Essa nova área do hospital concentraria então os conhecimentos de médicos e enfermeiros em insuficiência respiratória e ventilação mecânica em um único local. Nascia a UTI!
Recentemente a UTI tornou-se o centro das atenções em todo o mundo diante da pandemia da covid-19. É o local no qual muitas pessoas buscam alívio para insuficiência respiratória, causada por um dos piores vírus que conhecemos em nossa geração. E nossa principal ferramenta, o ventilador mecânico, agora é um equipamento familiar ao público, tópico de conversas nas mesas de jantar e objeto de disputa entre países.
Para alguns de nossos pacientes com covid-19 admitidos na UTI, seus dias se transformam em semanas, e semanas podem se transformar em meses. Para alguns sortudos, a batalha será vencida, e eles serão liberados da UTI, recebendo alta – não sem sobras de cicatrizes do combate que travaram em conjunto com a equipe médica. Para outros, a UTI será onde terminarão seus dias, sucumbindo a essa nova doença.
As famílias estão ausentes. Os pacientes estão sozinhos. O distanciamento social também existe na UTI.
É uma nova era estranha para as UTIs. Rostos irreconhecíveis cobertos por equipamentos de proteção individual (EPIs) são seus habitantes atuais. É difícil até reconhecer um ao outro. Interagir se tornou um desafio para as equipes médicas em situações agudas. Mais importante: as famílias estão ausentes. Os pacientes estão sozinhos. O distanciamento social também existe na UTI.
No entanto, certas coisas permanecem as mesmas. Não obstante a tecnologia, é na UTI que deparamos com os momentos mais íntimos vividos pelas pessoas: quando elas abrem as páginas da jornada de sua vida para nós, estranhos. Na UTI, as orações têm seu significado mais profundo e conexões preciosas são trazidas à tona. Nós, que trabalhamos nesses locais, continuamos a desempenhar um papel essencial em uma incrível jornada de recuperação de muitos. Infelizmente, para alguns, tentaremos reunir suas últimas memórias, o último capítulo de sua existência. O que é diferente, agora, é a necessidade de estarmos atentos e sempre criativos para compensar o isolamento. Ao promover encontros e despedidas virtuais, tentamos humanizar e normalizar as interações em nossas UTIs.
Os bons cuidados paliativos sempre fizeram parte do nosso trabalho, porém, tornaram-se tão relevantes quanto boas estratégias de ventilação mecânica e de suporte à circulação.
Pensando em nosso papel como prestadores de serviços de saúde durante a pandemia, uma história da tradição religiosa vem à mente. Foi quando Moisés encontrou Deus, e Ele lhe disse: “Tire as sandálias dos pés porque estás pisando em solo sagrado” (Livro de Êxodo 3:5). Sem discutirmos ou fazermos qualquer inferência religiosa, parece que estamos em um local assim, sagrado, ao entrar na UTI. Isso nunca se tornou tão evidente como agora.
Não importa o que esteja acontecendo com cada um de nós, sabemos que estamos na UTI por opção. É uma escolha diária que permanece, e muitos de nossos colegas estão pagando o preço máximo por terem feito essa opção.
Colocando tudo isso em perspectiva, devemos ser gratos e apoiar uns aos outros em solidariedade. Estar em um local sagrado nos coloca em posição de tocar (literalmente e filosoficamente) a vida de tantas pessoas em momentos de muita vulnerabilidade. Nossas mãos proporcionam conforto e esperança, mesmo quando nossas faces estão cobertas e precisamos imprimir uma foto nossa para prender ao traje de EPI com o objetivo de mostrar aos pacientes nosso “rosto humano”. Não importa o que esteja acontecendo com cada um de nós, sabemos que estamos na UTI por opção. É uma escolha diária que permanece, e muitos de nossos colegas estão pagando o preço máximo por terem feito essa opção.
Nesse momento crítico, como médicos e enfermeiros de UTI, gostaríamos de trazer de volta a perspectiva que às vezes perdemos ao enfrentar as tarefas exaustivas. Cada um de nós, membro de equipes das UTIs, precisa perceber que faz parte de algo muito maior do que nós mesmos. Cada um honra sua unidade de trabalho com seu talento, profissionalismo, comprometimento, compaixão e dedicação. Não só trabalhamos na UTI, entrando num dia e saindo no outro. Como dr. Ibsen e seus estudantes lutando juntos para salvar o maior número de vidas possível, fazemos parte de algo sem precedentes na história recente. Certamente nossa união de propósito, solidariedade e dedicação será recompensada com a sensação do dever cumprido, salvando muitos e oferecendo conforto, compaixão e o melhor de nós a todos.
E, quando passarmos por aquelas portas da UTI em nosso tradicional uniforme nesses dias, entendamos que realmente adentramos em terreno sagrado! Vamos então honrar esses momentos difíceis, reconhecendo a oportunidade que temos de fazer a diferença, um paciente de cada vez!
*Dr. Daniel Garros é professor na Universidade de Alberta e médico intensivista pediátrico no Stollery Children’s Hospital de Edmonton (Canadá) e Dr.a Grace van Leeuwen é médica cardiologista pediátrica e intensivista no Sidra Hospital de Doha (Catar)