Investigadora da pesquisa da Universidade de Oxford que busca desenvolver uma vacina para a covid-19, cujos testes da fase final serão feitos no Brasil a partir de junho, a especialista em doenças infecciosas Sue Ann Costa Clemens assegura que, caso haja sucesso, o Brasil terá chance de aquisição prioritária do produto. E o preço deverá ser de custo, diz a pesquisadora brasileira. A expectativa é de que o estudo seja finalizado no segundo semestre de 2020.
No Brasil, ela participará dos testes que serão feitos inicialmente em dois mil voluntários em São Paulo e no Rio de Janeiro, todos eles da linha de frente do enfrentamento à pandemia. Referência no assunto, Sue é pesquisadora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), instituição que irá coordenar a pesquisa no Brasil, diretora do Instituto para a Saúde Global da Universidade de Siena, na Itália, e consultora sênior para o desenvolvimento de vacinas da Fundação Bill e Melinda Gates. Nesta entrevista, Sue fala sobre o desenvolvimento da solução que poderá ser a resposta da ciência à pandemia que é considerada a maior tragédia humanitária desde a Segunda Guerra, tendo ceifado milhares de vidas no mundo e paralisado economias.
Como foram as articulações para trazer a pesquisa ao Brasil?
Trabalho com pesquisa há mais de 30 anos. E, por estar ligada à Fundação Bill e Melinda Gates, o professor Andrew Pollard, que conheço muito porque já trabalhamos juntos, me ligou para eu ajudá-lo a encontrar centros no Brasil. O Andrew é o chefe de todo o plano de desenvolvimento da vacina em Oxford. Por que Brasil? O Brasil está numa curva ascendente e estamos chegando aos picos de casos. E, para fazer um estudo de eficácia, você tem que ter uma taxa de infectividade crescente. Se não for assim, você não prova que a vacina é eficaz. E ele me ligou faz quatro semanas, sabendo que sou brasileira e pela experiência em pesquisa clínica, pedindo que eu fosse investigadora do estudo.
Há chance de o Brasil ter acesso prioritário às vacinas em caso de sucesso por ser participante da pesquisa? E a política de preços?
O Andrew disse que a ideia é de que os países participantes do estudo tenham acesso prioritário à vacina, mas que não poderia garantir porque a produção de Oxford é muito pequena. No meio disso, veio a parceria global de Oxford com o laboratório AstraZeneca. Isso é excelente porque a AstraZeneca vai aumentar enormemente a produção a nível global. A AstraZeneca está negociando com o governo brasileiro, eu fiz essa ponte, para produção local das vacinas. Há possibilidade de o governo brasileiro, como outros governos, participarem da produção da vacina de forma massiva. A ideia é que essa vacina saia quase pelo preço de custo. É medida de saúde pública. No primeiro momento, essa é a ideia.
Já foi solicitado aos países que apresentassem ordens de valores e de número de doses. O Brasil foi um deles. Os Estados Unidos já fizeram pedido para Oxford e AstraZeneca da 300 milhões de doses. Os países estão comprando mesmo sem saber quem vai chegar primeiro na vacina. E o Brasil foi solicitado a enviar o seu pedido.
E o Brasil já fez essa encomenda?
Não sei te responder porque isso é entre a AstraZeneca e governo. Mas já foi solicitado. Se foi respondido, não sei. Também já houve abordagem para a produção nacional, tanto Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) quanto Instituto Butantan foram abordados via Ministério da Saúde para ter capacidade de produção local. Se isso acontecer, vai ser excelente para o Brasil. A transferência de tecnologia, se o negócio for fechado, deve começar logo.
Não existe a hipótese de o Brasil ser colocado para o fim da fila da vacina devido às críticas que o país recebe, sobretudo da OMS, por conta da condução do governo federal no enfrentamento da pandemia?
Não, posso assegurar que não. Pelo menos com a AstraZeneca, não. Eu estava presente na reunião, não posso dar todos os detalhes, mas posso assegurar que o preço é baixo por dose de vacina. O Brasil está livre para fazer o pedido que for, assim como os Estados Unidos fizeram o seu pedido.
Como foram as fases 1 e 2 dos testes em Oxford?
Na fase 1, a partir do final de abril, foram vacinados cerca de 1,1 mil voluntários. Na fase 2, que começou agora há duas semanas, foram selecionados mais cinco mil soronegativos como voluntários. Os resultados foram bem promissores. A resposta imune foi satisfatória e as reações foram as esperadas para qualquer vacina, com algum vermelhidão, alguma dor. A reação sistêmica é como se fosse uma síndrome gripal, com alguma febre, mal-estar, mas isso foi observado em menos de 10% das pessoas vacinadas. Está dentro do esperado para qualquer vacina. Ela foi cotada recentemente entre as seis vacinas mais promissoras, dentre as 110 em desenvolvimento no mundo. Claro que tudo pode variar, mas estamos confiantes. Essa vacina é uma dose só, o que é o ideal para surtos de epidemias e pandemias.
Quais são as propriedades da vacina e o que se espera que ela cause ao ser inoculada no humano?
Essa vacina tem uma tecnologia nova. Essa tecnologia já vinha sido testada por Oxford e indústrias farmacêuticas em outras epidemias. É um vírus não replicante e não infeccioso que serve de carreador para a parte do coronavírus, que foi modificado e também é não infeccioso. São dois vírus combinados, um carrega o outro.
Essa plataforma é conhecida como vetor viral recombinante. Você combina dois vírus, ambos modificados para não causarem a doença, mas sim para estimular o sistema imune a promover uma resposta de defesa. A gente injeta a vacina e o sistema imunológico promove uma resposta imune à proteína do coronavírus, aquela que estava combinada com o vírus carreador, levando à produção de anticorpos que podem ser medidos no sangue e de outras células de defesa que são importantes para proteger o indivíduo contra o covid-19. É como se fosse um Cavalo de Tróia. Um vírus carreador que tem dentro dele outro vírus, aquele para o qual queremos gerar a proteção.
Pesquisas em humanos muitas vezes geram teorias, algumas conspiratórias, de que elas são feitas em países subdesenvolvidos por conta de possíveis danos. A fase 3 que será feita no Brasil é segura?
No Reino Unido, eles vão vacinar 10.260 voluntários nas fases 2 e 3. Mais os 1,1 mil da fase 1, são quase 14 mil voluntários. E a gente está entrando no meio disso, com a ideia de começar em junho, mas não é só o Brasil. Países na África e na Ásia farão parte do estudo, além dos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, vão recrutar 30 mil voluntários.
No final desse pacote clínico, vamos ter cerca de 50 mil voluntários vacinados para comprovar a eficácia e segurança da vacina. Na fase 1, você prova a segurança da vacina em adultos saudáveis. Na fase 2, você já passa para a comprovação da imunogenicidade do produto. Isso já foi comprovado até o momento e, por isso, vamos passar à fase 3. O estudo está sendo feito com uma agilidade que não é usual, por causa das circunstâncias em que vivemos, com o colapso de sistemas de saúde inclusive na Europa, mas ele está sendo feito com todo o critério de segurança e qualidade, como se fosse num processo normal.
Não é só o Brasil. Muito orgulhosos, seremos os primeiros além do Reino Unido. Mas em seguida começará na Ásia, na África e nos Estados Unidos. Não cabe o comentário de que os países em desenvolvimento serão usados como cobaias.
No Brasil, os voluntários recrutados serão médicos e enfermeiros que estão na linha de frente?
O que queremos é provar a maior eficácia dessa vacina, aplicando ela em pessoas que têm alto risco de infecção. Elas estão muito expostas ao vírus. Se a vacina conseguir proteger esses grupos, é porque ela está promovendo resposta imune muito boa. Se você vacina pessoas de baixo risco, que não saem de casa e seguem as normas de distanciamento, como vamos provar a eficácia de vacina? A eficácia é mostrar que funciona em situação de risco, mas não precisa ser só médico. Pode ser o motorista da van, o pessoal que trabalha com idosos, nas recepções e lavanderias de hospitais, por exemplo, onde há sabida exposição.
De zero a 10, qual seria a chance de sucesso da vacina? A senhora está otimista?
Estou otimista. É um desafio grande. Todos estamos correndo atrás, mas estamos trabalhando. Não darei uma nota porque pesquisa clínica tem de ser testada e, depois, verificamos quais são os resultados. Os indicadores que temos até o momento são bastante promissores.