Autor do best-seller "Armas, Germes e Aço", uma das análises mais importantes sobre o impacto das doenças infecciosas sobre a história humana, o biogeógrafo norte-americano Jared Diamond, 82 anos, diz que é preciso cautela ao comparar a covid-19 com outras pandemias do passado.
Além de ser menos letal do que o sarampo e a varíola, que dizimaram boa parte da população indígena do Novo Mundo logo após o contato com os europeus, o coronavírus representa também uma fase relativamente recente da história das moléstias emergentes, afirma Diamond.
As doenças infecciosas mais importantes do passado costumavam vir de animais domésticos, enquanto o maior perigo atual são os patógenos vindos de espécies silvestres, por meio do contato gerado pela devastação ambiental e pelo tráfico de animais.
Diamond, que conta ter perdido cinco amigos próximos por causa da covid-19, afirma ter esperanças de que a doença mostre como a cooperação internacional é imprescindível para enfrentar os grandes desafios globais, em especial a mudança climática.
Pergunta - Muita gente tem comparado o impacto do coronavírus ao efeito das doenças infecciosas europeias sobre os povos indígenas na Era dos Descobrimentos. Até que ponto o sr. acha que a analogia é válida?
Jared Diamond - Por um lado, é verdade que, assim como o mundo inteiro hoje no caso do coronavírus, os povos do Novo Mundo não tinham defesas naturais contra as doenças trazidas pelos europeus.
Já os habitantes da Europa, por causa de milênios de exposição a esses patógenos, tinham certo nível de imunidade genética a tais doenças, por efeito da seleção natural, e principalmente a imunidade adquirida a elas ao longo da vida. Ou seja, eles também podiam ficar doentes e morrer de sarampo ou varíola, mas alguns já estavam imunes por terem tido essas doenças antes e sobrevivido, e outros sofriam sintomas mais leves, ao contrário dos indígenas.
Por outro lado, a analogia não é muito precisa por dois motivos. A covid-19 só se espalhou com tanta velocidade graças às viagens de avião de hoje, enquanto em 1500 as doenças dependiam de viagens marítimas ou terrestres lentas para se propagar. E, claro, não há como comparar a letalidade relativamente modesta do corona, de cerca de 1%, com a das doenças da Era dos Descobrimentos. Só o sarampo matou entre 20% e 30% dos indígenas das Américas.
Mas a letalidade de 1% depende do uso de medicina moderna, certo? Sem a tecnologia atual, ela não seria muito maior?
JD - Alguns dados sugerem que na verdade ela não seria muito maior em épocas pré-modernas. A covid-19 atingiu duramente a população da reserva indígena dos navajos (sudoeste dos EUA), onde não há infraestrutura médica e, em muitos casos, nem água encanada. A mortalidade é alta, mas nem chega perto da causada pelo sarampo na época colonial (de cerca de 6 mil infectados do povo navajo, 300 morreram até agora, uma letalidade de 5%).
O aparecimento de doenças como a gripe aviária, a Sars e agora a covid-19 na China tem levado o público a enxergar o território como a grande fonte de novas pandemias ao longo da história. Essa impressão é justificável?
JD - Não. Historicamente, a China não desempenhou um papel especial no surgimento de pandemias. Trata-se de algo que surgiu nos últimos 30 anos ou, no máximo, 50 anos. As principais doenças infecciosas do Velho Mundo, como o sarampo, a varíola e a tuberculose, apareceram nos mais variados lugares da Eurásia, e não há razão para acreditar que a China tenha desempenhado um papel na sua origem.
A África Subsaariana provavelmente é a fonte da malária, enquanto a dengue surgiu na Ásia tropical. A China parece ter sido importante na origem da peste bubônica e da gripe, mas durante a maior parte do tempo essas doenças não tiveram impacto significativo no Novo Mundo.
O Velho Mundo como um todo produziu a grande maioria das doenças infecciosas por dois motivos importantes: a presença de animais domésticos de grande portes como bovinos e suínos, que não existiam nas Américas e foram a principal fonte dessas moléstias; e o fato de que os grandes símios (como chimpanzés e gorilas) e os demais macacos do Velho Mundo são geneticamente muito mais próximos do ser humano do que os macacos do Novo Mundo. Com isso, era mais fácil que as doenças dos primatas do Velho Mundo infectassem também as pessoas.
O que explica a importância da China nos últimos 30 anos é o fato de que a maioria das doenças de animais domésticos que podem nos infectar já saltaram para a população humana faz tempo, de modo que só as vindas de espécies selvagens podem se tornar novas pandemias.
A China se consolidou como mercado importante para animais silvestres vivos e também para produtos derivados deles para a medicina tradicional, o que aumenta o risco. Um fenômeno parecido envolvendo o consumo de carne de caça explica o surgimento de vírus como o HIV, o Ebola e o Marburg na África.
A intensificação da pecuária industrial também não aumenta esse tipo de risco?
JD - É verdade que a criação de animais em escala industrial aumenta o risco de novas doenças. Empacotar porcos e bois num espaço exíguo aumenta a transmissibilidade de doenças, e novas cepas de gripe muitas vezes vêm de suínos, mas a probabilidade de que algum patógeno fundamentalmente novo venha desses animais é pequena.
Se um visitante maligno do espaço sideral, um ser de seis pernas da galáxia de Andrômeda, resolvesse criar um plano para causar mal à humanidade, ele provavelmente pensaria: "Vou convencer esses terráqueos a criar mercados cheios de animais selvagens".
O sr. buscou compreender as causas do fim de civilizações em "Colapso". Há algo na pandemia atual que revele fragilidades da civilização do século 21?
JD - Acho que podemos dizer que ela é frágil em um aspecto: o que a covid-19 está fazendo é ameaçar o futuro do comércio internacional. E o paradoxo é que, para ser franco, a taxa de letalidade da doença é baixa, mesmo quando comparada a outras pandemias recentes. A letalidade da Aids foi alta durante muito tempo, mas com efeito no longo prazo. O Ebola e o Marburg matam 50% ou mais dos infectados, mas sua transmissibilidade é baixa, o que impediu o pior. O coronavírus, apesar de efeitos normalmente modestos sobre a saúde individual, afeta a estrutura das conexões internacionais: contatos sociais e tecnologia do transporte moderno baseado em caminhões, ferrovias, aviões.
Em muitos países, parece ter havido um aumento da confiança da população na ciência por causa da pandemia. O sr. concorda que se trata de um sinal positivo?
JD - É claro que é difícil falar de um lado positivo dessa pandemia. Eu e minha mulher perdemos cinco de nossos amigos próximos por causa da covid-19, tem sido terrível. Mas é um sinal de esperança, sem dúvida. Com exceção do atual governo federal dos EUA, que é anticientífico, ignorante e estúpido, trata-se de um efeito positivo.
Mas o mais importante seria a compreensão sobre como precisamos lidar com problemas em escala global. Não adianta cada país controlar apenas a sua situação interna: se a Mongólia, digamos, continuar com a transmissão do vírus, o mundo inteiro pode acabar sofrendo de novo.
As vacinas vão vir, muito provavelmente, mas o mundo ainda vai ter de lidar coletivamente com os desafios muito maiores da mudança climática e da perda de recursos naturais. Minha esperança é que a covid-19 ajude as pessoas a reconhecer isso.
E as coisas estão conectadas, certo? A destruição ambiental está diretamente ligada ao surgimento de patógenos.
JD - Sim, as pandemias recentes mostraram que o contato próximo entre seres humanos e animais selvagens, que é resultado da exploração desenfreada de ambientes naturais, é muito perigoso.
O sr. está escrevendo um novo livro?
JD - Sim, como eu sempre digo, enquanto estou respirando e com o coração batendo, estou escrevendo (risos). Mas prefiro contar qual é o tema numa próxima ocasião.