Uma disputa acirrada mobiliza o universo científico: quem serão os responsáveis por descobrir a vacina capaz de imunizar os humanos contra o coronavírus?
O Brasil participa da corrida com um concorrente notável. Jorge Kalil, renomado imunologista porto-alegrense graduado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), lidera uma equipe em São Paulo que se dedica ao estudo de um imunizante baseado no desenvolvimento de partículas semelhantes ao vírus. Radicado na capital paulista há 35 anos, o pesquisador, aos 66 anos, pertence ao grupo de risco para a infecção, o que o faz trabalhar de casa, no bairro Alto de Pinheiros. São entre 12 e 14 horas diárias de dedicação, entremeadas por inúmeras reuniões virtuais.
Professor titular de Imunologia Clínica e Alergia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (Incor), o médico gaúcho já esteve à frente do Instituto Butantan.
Em entrevista a GaúchaZH, ele revelou que espera ter uma resposta sobre a qualidade do seu protótipo de vacina até o final deste ano. Sobre apostas em andamento em outros países, em fases mais adiantadas, ele acredita que, em questão de meses, será possível saber se serão viáveis ou não. Mas Kalil reforça um alerta:
— Temos que continuar com tranquilidade e serenidade, fazendo ciência de boa qualidade. Essas coisas demoram. Se fizerem uma vacina na Inglaterra, até ela chegar ao Brasil, eu não sei quantos anos vai levar.
O senhor lidera uma equipe de pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e do Instituto do Coração (Incor) em uma pesquisa para a obtenção de uma vacina contra a infecção por coronavírus baseada no desenvolvimento de partículas semelhantes ao vírus. Poderia explicar resumidamente do que se trata?
Ao fazer uma vacina, o que queremos é produzir anticorpos que neutralizem o vírus. Neutralizar o vírus significa impedir que o vírus entre na célula. Outra possibilidade da vacina é induzir linfócitos, que são parte dos glóbulos brancos que nós temos, e que sejam específicos para matar células infectadas com o vírus. Para fazer a vacina, tem gente que usa o vírus inteiro, mas tem uma série de inconvenientes para se usar o vírus inteiro, e tem gente que usa fragmentos ou moléculas importantes do vírus — a maior parte das pessoas buscando vacinas está imunizando com a proteína da espícula, que é a proteína que dá aquela forma de coroa ao vírus. O que você vai utilizar como vetor dessas moléculas para induzir uma resposta imune que seja eficaz? Tem quem usa RNA mensageiro, outro usa proteína inteira, tem várias formas. Nós utilizamos as partículas semelhantes ao vírus (virus-like particles, ou VLP, em inglês), que são moléculas que se aglutinam como se fossem vírus, só que não têm ácido nucleico. E, como não têm ácido nucleico, não se multiplicam. Mas o sistema imune vê aquilo como um vírus e manda uma resposta bem forte.
Digamos que o sistema imunológico vê a cara do vírus, mas por dentro é diferente.
Isso. Só que não é o coronavírus, é outro vírus. Nós colocamos, na superfície dessa partícula semelhante ao vírus, segmentos do Sars-CoV-2 contra os quais a gente acha que seja importante ter uma resposta imune bem eficaz. Então, para isso, o que a gente faz? Já sintetizamos essas partículas virais, já sintetizamos uma série de fragmentos do vírus que achamos importantes. Estamos fazendo uma conjugação das partículas virais semelhantes ao vírus com esses fragmentos da proteína para começar os ensaios em animais. Concomitantemente a isso, coletamos o sangue de 200 pessoas convalescentes — ou seja, que tiveram a doença e conseguiram se curar, então elas têm uma resposta imune eficaz — e estamos estudando tanto detalhes da resposta de anticorpo quanto detalhes da resposta celular. Nós queremos colocar o número de partículas virais que seja importante para o desenvolvimento das duas coisas. Estamos fazendo essas duas coisas em paralelo: vamos testar fragmentos que achamos que são importantes, deduzidos por software de bioinformática, e, ao mesmo tempo, testes com sangue de indivíduos. Quando tivermos essas partículas prontas, acopladas, vamos testá-las em camundongos.
Há um prazo em vista?
Já era para ter começado, mas tivemos problema com um reagente, que atrasou alguns dias para chegar do Exterior.
Quando essa proposta poderá se mostrar eficaz ou não? Há uma data em mente?
Tem vários experimentos em animais que faremos para aprimorar ao máximo o protótipo de vacina. Vamos testar individualmente esses fragmentos do vírus e depois, na construção final, botar vários fragmentos do vírus que achamos importantes. Quando isso estiver certo, aí vamos testar um modelo animal. Vamos imunizar esses animais com nosso protótipo vacinal — dar um vírus e ver se eles estão protegidos ou se ficam doentes. Acho que, até o final do ano, teremos uma previsão se o protótipo é bom.
O que tem se sobressaído mais até este ponto da pandemia: a falta que faz o investimento contínuo em ciência ou o muito que certos grupos estão conseguindo fazer apesar dos orçamentos acanhados? Já se fala em mais de uma centena de estudos em andamento.
Estão registradas, junto à Organização Mundial de Saúde (OMS), 120 tentativas de fazer vacina. O pessoal da Universidade de Oxford e o pessoal da Moderna estavam testando vacinas contra a sars e o mers, outros tipos de coronavírus, e já estão na fase de ensaios clínicos. Um estudo da China sobre adenovírus também. Vamos saber logo se isso vai funcionar ou não.
Em questão de meses?
Em questão de meses.
O senhor está mais otimista em relação a algum deles, especificamente?
Não. Tenho bastante críticas para cada um, mas, como são meus concorrentes, não posso falar, senão parece que estou com dor de cotovelo (risos). A gente vai aprender com esses testes que estão sendo feitos em pessoas. Até agora, todos estão indo bem. Mas eles estão recém na fase um, que é para ver sobre toxicidade e segurança, em humanos. Eu vou demorar. Até o ano que vem, eu não estarei (nessa fase).
Até o final deste ano, não deveremos ter uma vacina, né?
Acho que não. Também acho que as pessoas fazem promessas, há essa corrida por informações, existe uma ansiedade muito grande de toda a população mundial e também uma corrida para conseguir grana. A (multinacional farmacêutica) AstraZeneca deu mais de US$ 1 bilhão para o grupo de Oxford avançar rápido.
Mesmo sem saber se vai funcionar.
É. A mesma coisa com a Moderna: é uma startup, uma empresa pequena, que conseguiu aumentar muito o valor de suas ações ao dizer que indivíduos foram testados. Tem muita guerra de informação. Temos que continuar com tranquilidade e serenidade, fazendo ciência de boa qualidade. Essas coisas demoram. Se fizerem uma vacina na Inglaterra, até ela chegar ao Brasil, eu não sei quantos anos vai levar.
Claro, a descoberta de uma vacina eficaz não significa o acesso mundial imediato a ela.
Isso leva tempo. Tem que construir fábricas que façam esse tipo de vacina...
Tem toda a logística também. Daí se pensa em anos, e não em meses, correto?
Anos, anos.
Já se viu antes, no mundo científico, tanto esforço concentrado na mesma direção e ao mesmo tempo?
Nunca vi nada igual. Tinha muita gente que estava trabalhando em câncer, em imunoterapia. Mas não era concentrado em um tipo só de câncer ou de terapia. Agora existe, realmente, um esforço mundial para trabalhar com vacina contra a covid-19.
Para um pesquisador da área, como o senhor, acredito que acompanhar uma pandemia "ao vivo" seja uma experiência muito marcante.
É muito marcante, muito interessante, me mantém muito vivo. Por isso que trabalho horas sem fim, sem parar, sem me sentir... Quer dizer, às vezes me sinto cansado. Não tenho mais 25 anos. Mas, mesmo assim, é um incentivo para continuar olhando, buscando, pensando. O trabalho intelectual é muito grande. As pessoas pensam só no teste, acham que é uma coisa tipo bolo de cozinha, mas não é. É um trabalho intelectual superintenso.
Por ser do grupo de risco, acima dos 60 anos, o senhor continua trabalhando de casa? Gostaria de saber também como está o seu filho, que pegou o coronavírus.
Meu filho ficou superbem, teve uma covid-19 leve, a esposa dele também. Eu testei negativo, não tive a doença, mas, como tive contato com ele, fiz o isolamento — o que todos os indivíduos brasileiros deveriam fazer para parar a transmissão. Eu e a minha esposa ficamos isolados em casa, fazendo todo o serviço da casa, já tínhamos comida, sem nenhum contato (com outros) por duas semanas. Continuo em casa. Vou, com alguma regularidade, ver as pessoas, só para elas me verem fisicamente no laboratório, mas não preciso estar lá para trabalhar. Meu trabalho é intelectual. Quem faz os experimentos é o pessoal mais jovem. Coordeno de casa com múltiplas reuniões diárias.
O que já se sabe sobre a imunidade do corpo humano contra reinfecções pelo coronavírus?
Até agora, não teve nenhuma reinfecção relatada e comprovada cientificamente. Em princípio, quem teve a doença está protegido. Por quanto tempo, ainda não sabemos. Isso só o tempo nos dirá. Mas, por enquanto, não tem casos de reinfecção.
Que fatos mais o impactaram de dezembro para cá, quando o vírus foi detectado na China?
São impressionantes a quantidade de gente que está trabalhando (em estudos) e a quantidade de publicações científicas que já temos a respeito, em escala mundial. Nem todas as publicações têm o rigor a que estamos acostumados, porque são publicadas rapidamente, as revisões são mais rápidas. E também nunca vi, no mundo, uma expectativa tão grande em relação ao trabalho científico. Realmente, a comunidade mundial está esperando muito da ciência, o que acho muito bom. Espero que o Brasil entenda o quão importante é a ciência para resolver os problemas do país. Agora é um problema agudo, mas, no dia a dia, sempre tem problemas para serem resolvidos.
Quantas horas por dia o senhor tem dedicado ao trabalho?
Entre 12 e 14 horas. Antes, eu trabalhava bastante, mas não assim, continuamente, inclusive sábado e domingo. Nunca trabalhei tanto antes.
O senhor diria que essa pesquisa é o maior desafio da sua carreira?
Olha, se eu conseguir achar um resultado, sim, mas tem muitas coisas importantes com as quais já contribuí com a ciência que são muito válidas — sobre zika, dengue, doença reumática cardíaca. Vamos ver com o que a gente consegue contribuir com esta. Pode ser que seja a mais importante.