Uma palestra sobre uma suposta epidemia de crianças e adolescentes transgêneros, prevista para a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, causou surpresa e preocupação entre especialistas da área.
Agendada para o dia 18, a apresentação tem o título Epidemia de Transgêneros - O que Está Ocorrendo com Nossas Crianças e Adolescentes? e será ministrada pela médica psiquiatra Akemi Shiba, formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Marcada por solicitação do deputado estadual Eric Lins (DEM), a palestra foi criticada por diferentes parlamentares e gerou repúdio por parte de grupos LGBT+. Após as contestações, Lins solicitou a troca do nome do evento para "Proliferação de transgêneros". Mais tarde, a denominação foi atualizada para "Aspectos médicos e desenvolvimentais da disforia de gênero na infância e adolescência".
Embora só se conheça por enquanto o título do evento, Akemi Shiba já manifestou seu pensamento na internet. Em texto recente para o site Articulação Conservadora, ela descreveu a procura por cirurgias de troca de sexo como uma "pandemia". "Está se criando um contingente de jovens estéreis, mutilados e com grande sofrimento emocional. Indivíduos fisicamente hígidos e férteis são transformados em indivíduos estéreis mutilados que dependerão de hormônios para o resto de suas vidas mesmo que 'destransicionem'", escreveu a psiquiatra.
O urologista Nelson Batezini, que realiza cirurgias de transgêneros e atua no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, contesta essas afirmações:
— Isso não é verdade, é o contrário. O transtorno de identidade de gênero traz um sofrimento muito grande. Quando as pessoas vêm buscar auxílio, é para melhorar isso. A grande maioria dos tratamentos têm sucesso. Não são pessoas mutiladas. São pessoas que têm uma aceitação muito ruim de sua imagem corporal, por causa do transtorno, e que melhoram com o tratamento. Não entendemos muito bem o que essa palestra vai trazer, mas qualquer pessoa pode falar o que quiser. A questão é se é uma coisa embasada, com cunho científico e para ajudar os pacientes, ou se é alguma coisa enviesada, com viés político, econômico, sociocultural.
Maria Inês Lobato, coordenadora do Programa de Identidade de Gênero do Hospital de Clínicas, considera que, mesmo sem conhecimento do que será apresentado na palestra, o título não corresponde à realidade. Ela afirma desconhecer qualquer dado sobre uma epidemia de pessoas transgênero.
— Que seja do meu conhecimento médico, não existe. É um fenômeno constante na nossa civilização. O que mudou é que as pessoas agora podem falar sobre isso, sentir isso e expor isso. Trabalhamos com a ideia científica. Quem fala em epidemia tem de mostrar números. Existe uma de coronavírus e estão mostrando os números. Se ela fala em epidemia de transgêneros, tem de fazer o mesmo. Não se pode falar em uma coisa dessas tem ter dados científicos, sem provas. Vivemos pesquisando, tentando publicar. Não é achismo, não é a minha opinião. Acredito que esse termo foi usado de forma meio leiga, para causar impacto. Não acredito que haja essa epidemia e que existam dados estatísticos de confiabilidade.
Identificação com o próprio gênero
Maria Inês também ficou surpresa que o subtítulo da palestra agendada no parlamento trate de crianças, até porque o atendimento médico que se dá a crianças com comportamento sexual atípico está centrado na proteção e na orientação. A especialista observa que, por volta dos três ou quatro anos de idade, o indivíduo torna-se capaz de identificar se é menino ou menina e se as outras crianças são meninos ou meninas. Também compreende que isso não é algo que muda. Nessa fase da vida, pode haver sofrimento para algumas crianças, que não se identificam com o próprio gênero.
Do total de crianças com comportamento sexual atípico (o que engloba, por exemplo, um menino gostar de usar roupa de menina), menos de 5% virão a ser transgêneros (onde estão incluídos grupos como os travestis e os transexuais). Seria, portanto, uma pequena fração do total de indivíduos, o que não configuraria epidemia.
Profissionais da área lembram que crianças não recebem terapias hormonais de feminilização ou masculinização e não podem fazer cirurgia para mudança de sexo. Normativa do Conselho Federal de Medicina admite hormonioterapia a partir dos 16 anos e cirurgia a partir dos 18 anos. Para o Ministério da Saúde, no entanto, as idades mínimas são, respectivamente, 18 anos e 21 anos, o que significa que antes disso não é possível realizar os procedimentos pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Além disso, as normas prescrevem um mínimo de dois anos de acompanhamento prévio em ambulatório especializado, o que na prática acaba se estendendo por um prazo maior.
— Tem um tempo. Não se faz um diagnóstico imediato. Primeiro as equipes verificam se não há alguma alteração orgânica, genética ou hormonal. Depois, há todo um acompanhamento psicológico, psiquiátrico, endocrinológico. Além de as cirurgias serem apenas para maiores de idade, ninguém é operado sem passar por uma avaliação que dura pelo menos dois anos — diz Batezini.
O presidente do Conselho Regional de Medicina (Cremers), Eduardo Trindade, afirma que a entidade estará atenta ao conteúdo da palestra, para analisar alguma eventual infração do código de ética médica e se serão cabíveis providências. No entanto, ele acha importante não fazer um julgamento antes de o evento ocorrer.
— Como não sabemos o conteúdo e o teor dessa palestra, não podemos atuar. O título gerou uma polêmica muito grande, mas não sabemos do que se trata, qual será o enfoque e que informações serão passados. Não podemos fazer um juízo de valor prévio, uma censura prévia. Não podemos julgar única e exclusivamente pelo título — observou.
A Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) também foi consultada e respondeu que "só se manifesta sobre encontros, palestras, seminários e demais eventos que sejam organizados pela instituição ou por médicos psiquiatras associados à ABP, por total desconhecimento do conteúdo de eventos que não se enquadrem na descrição acima".
GaúchaZH não conseguiu contato com a psiquiatra Akemi Shiba.
Workshop sobre sexualidade adolescente
Diante da controvérsia despertada pela palestra prevista para a Assembleia Legislativa, a Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (APRS) decidiu organizar um workshop sobre sexualidade na adolescência. O evento ocorrerá na sede da Associação Médica do Rio Grande do Sul (Amrigs), na manhã de 21 de março, três dias após a apresentação de Akemi Shiba. O workshop será gratuito e aberto a qualquer interessado.
— É para esclarecer o que realmente existe de evidência científica, dentro de uma visão médica e psicológica. Vamos discutir toda a questão, mostrar resultados de pesquisas e principalmente colocar o tema da transexualidade dentro de uma discussão maior sobre o que é a sexualidade do adolescente no século 21 — explica a psiquiatra Silzá Tramontina, coordenadora do departamento de psiquiatria da infância e adolescência da APRS.
Médica do Hospital de Clínicas, Silzá ressalta que é importante que o assunto seja tratado de um ponto de vista científico, deixando de lado aspectos políticos, partidários e ideológicos. Ela observa ter havido um aumento da procura dos serviços especializados por causa de questões relativas à sexualidade dos adolescentes, mas isso não significa que tenha ocorrido um crescimento de casos de transexualidade e muito menos que se possa falar em uma epidemia — até porque não existem dados estatísticos, nem da atualidade, nem de gerações passadas.
— O aumento da procura pelos serviços envolve adolescentes atrapalhados, que não têm uma orientação sexual definida, algo próprio da geração atual. A maioria dos que nos procuram vem com dúvidas. Essa atrapalhação faz parte desta geração e depois se resolve na vida adulta. As famílias trazem esses jovens, porque querem ajudá-los. As famílias estão junto, nesta geração. Dizer que destrói a família é exagero, pelo contrário. As famílias estão muito mais abertas para essa situação.