Por Lucia Campos Pellanda
Médica, reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)
Algumas pessoas estão muito preocupadas com o coronavírus, que vem se espalhando rapidamente pelo mundo e já tem quatro casos confirmados no Brasil. Outras apontam que o importante é se preocupar com a dengue, uma doença mais letal, que não está controlada no Brasil e causou mais de 750 mortes no ano passado, atingindo mais de 1,5 milhão de pessoas, um dos piores anos desde o início dessa série histórica.
Quem tem razão?
Infelizmente, todos. Não é uma questão de escolha entre uma coisa ou outra. Temos de nos preocupar com o coronavírus e com a dengue.
Assim como temos de trabalhar para combater a fome e a obesidade, doenças antigas e doenças novas, comuns e raras, doenças que atraem a atenção e doenças negligenciadas.
Talvez o maior risco mesmo seja o das notícias falsas que causam pânico. O coronavírus é uma doença que precisa ser controlada, tem alto índice de contágio, e ainda não sabemos muitas coisas sobre o comportamento que a epidemia pode ter. As notícias falsas sobre as medidas contra o vírus podem piorar a situação, causando danos, deixando de proteger as pessoas, afetando a disponibilidade do sistema de saúde e até a economia. A desinformação causou um movimento antivacinas que hoje é um dos principais problemas de saúde mundial. Doenças que já haviam sido controladas voltaram, e o seu potencial de causar mortes e sequelas graves é bem maior, inclusive, do que o do coronavírus.
Qual o tratamento que aborda todos esses problemas ao mesmo tempo? Ciência.
Olhe em volta. Praticamente tudo o que você vê ou é fruto de pesquisa ou pode se beneficiar de uma pesquisa.
Algumas coisas funcionam muito bem no Brasil. A ciência é uma delas.
Cientistas brasileiras sequenciaram o genoma do coronavírus em dois dias – o que levou 15 dias em outros países. Outros países estão pedindo nossa ajuda. Fruto de colaboração, muita dedicação e investimento em ciência. Os grupos participantes dessa força-tarefa vieram de instituições públicas de pesquisa. Nós temos cientistas em saúde pública, virologia, doenças infecciosas, ciências básicas, imunologia, comunicação e gerenciamento de desastres, entre tantas áreas necessárias, que são reconhecidos mundialmente. Mas esses cientistas estão encontrando cada vez mais dificuldades de trabalhar, com redução de orçamento para a ciência, deterioração das condições de trabalho e desvalorização de todo o esforço que fazem pela sociedade brasileira.
Algumas coisas funcionam muito bem no Brasil. A ciência é uma delas. Cientistas brasileiros sequenciaram o genoma do coronavírus em dois dias – o que levou 15 em outros países.
E isso não acontece somente na área da saúde. Temos cientistas de referência em todas as áreas.
Não fazer pesquisa é depender eternamente do conhecimento produzido por outros países, em outros contextos, que nem sempre se aplicam ao nosso.
O grande problema da ciência é que levamos anos para construir uma linha de pesquisa, projetos consistentes e resultados visíveis. Por outro lado, o desinvestimento aparece muito rápido. O Brasil subiu, na última década, da centésima posição nos rankings mundiais de produção científica para a décima-terceira posição, principalmente graças às universidades e a um investimento consistente em formação de mestres e doutores. Para retomar esse crescimento ou reinstalar projetos de pesquisa asfixiados pela falta de recursos, pode levar anos. Nesse meio tempo, poderemos desperdiçar grande parte do que já foi investido. Um projeto 90% completo é o mesmo do que 0% completo, em muitos casos: a falta de verbas em fases finais de projetos cria situações absurdas como a de ter equipamentos, mas não ter insumos ou pessoal para utilizá-los. Além disso, é claro, a desvalorização provoca a desesperança de uma geração inteira de futuros cientistas, levando à fuga de cérebros e, em última análise, ao retrocesso do país.
Ciência não é gasto. É investimento. O desinvestimento em pesquisa resulta em uma queda progressiva não só da produção científica, mas de indicadores relacionados, inclusive de economia. Muitos países mostraram que uma saída para a crise é investir mais em ciência, e não menos. Portanto, devemos nos preocupar com a dengue, tanto nas medidas ao nosso alcance, como evitar água parada, , fazer o descarte consciente do lixo, limpar terrenos, calhas e outros locais que favorecem a proliferação do mosquito, como com as condições de saúde da população, que aumentam o risco da doença.
E devemos, sim, nos preocupar com o coronavírus. Fazer todas as coisas que já devemos fazer para evitar a gripe e outras doenças: lavar as mãos, manter a higiene das superfícies, evitar aglomerações, cuidar da saúde em geral. E, é claro, defender a ciência brasileira.