Neste ano, o Conselho Nacional de Justiça publicou o relatório Judicialização da Saúde no Brasil, Perfil das Demandas, Causas e Soluções, um trabalho alentado, de 174 páginas, que aponta um aumento de 130% das ações judiciais movidas por acesso a tratamentos médicos entre 2008 e 2017. “A judicialização da saúde tornou-se relevante não apenas para o sistema de assistência à saúde, mas para o próprio Judiciário, que tem de lidar com centenas de milhares de processos, vários dos quais sobre temas recorrentes e quase sempre contendo pedidos de antecipação de tutela ou liminares”, diz o texto.
Um dos Estados escolhidos para uma análise mais detida no relatório, o Rio Grande do Sul é apresentado como um palco onde predominam casos individuais envolvendo medicamentos fora das listas e protocolos do Sistema Único de Saúde (SUS) e tendo como polo passivo a Secretaria de Saúde. “Recentemente, o Estado experimentou uma redução no crescimento do número de novas ações por ano, mas ainda conta com 61 mil pacientes judiciais, que custaram, no ano de 2016, 4% do seu orçamento total da saúde”, cita o relatório.
O CNJ destaca, no entanto, que há um divisor de águas no que diz respeito à gestão da judicialização: o comitê estadual criado para tratar do assunto, reunindo o Tribunal de Justiça, a Secretaria Estadual da Saúde, a Federação das Associações dos Municípios (Famurs), os ministérios públicos estadual e federal, a Advocacia Geral da União, a Defensoria Pública Estadual, a Procuradoria-Geral do Estado, a Procuradoria Regional da União e o Conselho Regional de Medicina (Cremers). “Como resultado, o atendimento administrativo tem recebido 85% das demandas em saúde na Capital, das quais apenas 15% se tornaram pedidos judiciais em 2015, o que inverteu o cenário de predominância de casos judiciais sobre administrativos – em 2017, tramitariam na Capital 20 mil processos administrativos e 3,1 mil judiciais”, segundo o documento. O texto observa que os magistrados gaúchos tendem a conceder as ações ajuizadas, mas porque a defensoria só ajuíza ações que não podem ser resolvidas administrativamente.
O comitê elogiado no relatório é coordenado pelo desembargador Niwton Carpes, para quem o mérito do órgão é a atuação em rede para encontrar formas de diminuir o impacto da judicialização no orçamento público. Niwton afirma que as reuniões do comitê são às vezes tensas, com atritos e rusgas, por serem discussões entre profissionais de áreas distintas, mas têm contribuído para encontrar soluções, o que levou a uma estabilização do número de casos.
– O que não pode acontecer e vinha acontecendo é um cidadão na ponta do sistema buscar um remédio e ninguém dar informação a ele. Então ele busca a Defensoria Pública ou um advogado particular e entra com uma ação. Movimenta toda a máquina pública por determinado remédio que já deveria estar na farmácia pública, se tivéssemos uma política adequada e correta. Através dos comitês, vamos fazendo politicamente uma pressão.
Na avaliação de Carpes, o que havia antes era a judicialização desenfreada.
– Era quase irracional, sem controle, sem uma otimização de políticas públicas – observa o desembargador.
O próprio relatório do CNJ cita um dado significativo sobre esse descontrole. Cerca de quatro anos atrás, o Judiciário concedeu, no período de oito meses, 13 mil liminares obrigando a Universidade de São Paulo (USP) a fornecer, para pacientes de câncer, uma substância sem qualquer respaldo científico conhecida como fosfoetanolamina. O próprio desembargador admite que decidiu favoravelmente no caso da chamada “pílula do câncer”:
– Era um mero paliativo. Mas o cara está ali, moribundo, e tu não vais dar?
Essa é uma das piores decisões. O juiz entra em pânico. A petição inicial vai descrever o fato com um colorido melodramático, vai pintar um quadro de desespero, de pavor, que deixa o juiz aflito. A tendência natural da gente é tentar salvar.
NIWTON CARPES
Desembargador
Segundo Carpes, em situações desse gênero, que envolvem vida ou morte, o juiz é colocado em uma posição delicada, pela sua condição de leigo.
– Essa é uma das piores decisões. O juiz entra em pânico. A petição inicial vai descrever o fato com um colorido melodramático, vai pintar um quadro de desespero, de pavor, que deixa o juiz ansioso e aflito. A tendência natural da gente é tentar salvar.
A solução encontrada foi dar respaldo técnico aos julgadores. Em uma parceria do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi criado o sistema online E-NatJus, que reúne notas e pareceres científicos sobre a efetividade de diferentes tratamentos, para que os juízes possam verificar se há eficácia do que é demandado. Além disso, desde agosto, os magistrados de todo o país passaram a contar com um serviço de consultoria técnica a distância para quando deparam com um pedido de tutela antecipada. Uma equipe de médicos, com apoio dos hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, fica disponível em tempo integral, sete dias por semana, para oferecer esse suporte aos magistrados. Estruturas locais nos mesmos moldes também vêm sendo montadas, inclusive no Rio Grande do Sul.
Questionado se esse sistema significa uma tendência de que mais pedidos feitos por pacientes sejam negados e que cresça a sensação, na sociedade, de que está mais difícil obter sucesso pela via judicial, Carpes reconhece que sim:
– Antes, na dúvida, o juiz até dava. Hoje, temos os pareceres técnicos. Então essa pergunta pode ser respondida com uma afirmativa. Sim. Mas não é para isso, quero deixar bem claro. É para ser mais razoável e adequado, dar aquilo que é necessário. O que a gente tenta, com estudos técnicos, é diminuir a margem de erro.
O responsável pelo núcleo de defesa da saúde na Defensoria Pública do Estado, Enir Madruga de Ávila, observa que, hoje, apenas 20% a 25% das situações que chegam ao órgão são judicializadas – quase sempre envolvendo remédios fora da lista do SUS. Na maioria dos casos, a defensoria busca uma solução administrativa. Antes, diz ele, não era assim:
– Lá atrás, quando começou a judicialização da saúde, o paciente chegava na frente do defensor público com uma receita e um laudo com duas ou três linhas, e ele judicializava aquilo automaticamente, por medo de que aquele problema se tornasse maior. Ao longo do tempo, fomos vendo que as coisas não eram exatamente como pareciam, e o próprio Judiciário passou a ter critérios mais rigorosos.
O defensor afirma não ser insensível aos problemas orçamentários dos governos, mas se descreve em estado de alerta diante das maiores exigências técnicas e das ferramentas que vêm sendo colocadas para frear a judicialização e o êxito de eventuais demandantes junto aos tribunais. Para ele, isso representa tempos difíceis para o paciente.
– O grande problema, nessa queda de braço, é que a estrutura toda do Estado se aparelha hoje para melhor viabilizar uma decisão judicial, enquanto, no outro lado, o indivíduo só tem o médico da unidade básica de saúde ou do hospital do SUS. O sentimento que tenho é que o maior beneficiado vai ser o Estado.
O direito ao bem-estar
Casos como os de Lisiane Silveira, 37 anos, e de Vanessa Goulart, 34, poderiam ter menos chance de prosperar em um novo cenário. As duas tiveram câncer de mama e receberam pela via judicial o medicamento zoladex, que não consta na lista do SUS para casos como os delas.
Vice-presidente do Instituto Amigas de Peito e Alma da Serra Gaúcha, a contadora Lisiane recebeu o diagnóstico em 2015. Dois anos depois, passou a sofrer uma hemorragia intensa, como se fosse uma menstruação incessante. Era efeito colateral do quimioterápico que estava usando. A médica sugeriu a troca para um outro remédio, mas ele precisava ser tomado em conjunto com o zoladex. A ação contra o governo do Estado teve uma decisão favorável em pouco mais de duas semanas.
– Eu estava com muito medo. Foi um pesadelo. Mas a decisão veio rapidamente. Fiz as aplicações e parou o sangramento. Acho errado a gente, como paciente de câncer de mama, ter de provar que precisa de uma medicação. Me senti desrespeitada de ter lutar pelo medicamento.
No caso de Vanessa, diagnosticada aos 31 anos, as injeções de zoladex teriam o papel de reduzir o risco de a quimioterapia deixá-la infértil. Como cada aplicação custava R$ 2 mil, a comerciária judicializou e ganhou. Em uma das ocasiões, foi buscar a droga na farmácia do Estado e estava em falta. Recorreu de novo à Justiça e recebeu dinheiro para a compra.
– Não fico pensando em ter filho, porque é só uma possibilidade. Mas é um direito que eu tenho. Se o SUS dá o zoladex para outras doenças, porque não dar para o câncer de mama? É como se o único objetivo, para o SUS, fosse tu ficares viva. O restante não importa – protesta.
O advogado que moveu a ação de Vanessa, Pedro Veitenheimer, que atua como voluntário na Associação de Apoio a Pessoas com Câncer (Aapecan), aposta no artigo 196 da Constituição Federal para continuar fazendo valer o direito dos pacientes.
– O direito à saúde está garantido pela Constituição, e a Constituição tem muito mais valor do que qualquer regimento interno, portaria ou instrução normativa dos órgãos públicos – afirma.