O médico congolês Denis Mukwege, 64 anos, tornou-se ginecologista com o sonho de garantir partos seguros para gestantes e bebês. Acabou conhecido no mundo todo pelas mais de 50 mil cirurgias em vítimas de estupro – em geral para reconstruir genitais dilacerados por tiros, produtos químicos, objetos cortantes ou fogo – realizadas no hospital que fundou 20 anos atrás em seu país. Prêmio Nobel da Paz em 2018, Mukwege esteve em Porto Alegre na noite desta segunda-feira (19), como convidado do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento, e dividiu com o público gaúcho a sua experiência aterradora, denunciando o silêncio da comunidade internacional em relação aos horrores que ocorrem na República Democrática do Congo (RDC) e lançando um apelo para que os homens se unam à luta pela igualdade de gênero.
— É hora de repensar o modelo de sociedade patriarcal. As mulheres são o futuro da humanidade. Escolham a reparação, a Justiça e a masculinidade positiva. As mulheres não podem continuar esse combate sozinhas. Os homens têm de estar na arena. Lanço esse apelo aos homens do Brasil — exortou.
A virada na trajetória de Mukwege foi provocada pela eclosão da guerra civil em seu país, que envolve mais de uma centena de grupos armados e já soma 6 milhões de mortos. Quando o conflito começou, ele trabalhava em um hospital em Lemera, no leste da RDC. Em 1998, um ataque ao estabelecimento resultou em 35 pacientes mortos em suas camas.
— Lemera era um povoado tranquilo, que oferecia um cenário idílico para eu levar a cabo o combate contra a mortalidade materna e a mortalidade infantil. Mas isso teve curta duração. A fossa comum na qual estão enterrados meus pacientes e meu pessoal é um símbolo da banalidade do mal. Diante desse cenário, devemos nos resignar? Claro que não. Precisamos continuar o combate — afirmou, diante do público que lotou o Salão de Atos da UFRGS e o aplaudiu de pé em vários momentos.
Por causa do massacre, o médico teve de continuar a combater em outro fronte. Fugiu para a cidade de Bukavu e começou a prestar atendimento em tendas, de forma improvisada. Em 1999, fundou o Hospital de Panzi. Esperava realizar partos, mas a primeira paciente que recebeu foi uma mulher que havia sido estuprada e levara tiros na região da vagina. Em três meses, os casos similares somavam 45. Com o tempo, cerca de 10 mulheres violentadas chegavam por dia à unidade. Cada uma havia sido atacada por três homens, em média.
Mukwege percebeu que o estupro estava sendo usado, de forma sistemática, como arma de guerra, uma arma de destruição em massa. As batalhas eram travadas no corpo das mulheres. Aldeias eram invadidas para a promoção de estupros coletivos, à vista de toda a comunidade, o que tinha como objetivo desmoralizar e desagregar.
— Os estupros são uma arma barata, mas extremamente eficaz. Não são cometidos por desejo sexual. São resultado de uma planificação de cada grupo armado, com o objetivo de humilhar a comunidade, destruir o tecido social e levar ao abandono de terras. Utilizam o estupro para traumatizar as comunidades e destruir as gerações presentes e futuras. Nos conflitos de hoje, em diferentes partes do mundo, o estupro é cada vez mais usado como estratégia de guerra, de domínio e de terror — refletiu o prêmio Nobel.
Para Mukwege, o horror atingiu seu auge quando começaram a chegar ao Hospital de Panzi também crianças e idosas brutalizadas – ele atendeu um bebê de seis meses e uma mulher de 80 anos, por exemplo. Foi quando ele percebeu que não era suficiente apenas oferecer atendimento médico às vítimas. Era necessário fazer mais. Não bastava a cirurgia ser bem-sucedida e a mulher estar bem fisicamente, concluiu, se ela continuava destruída do ponto de vista mental. A partir daí, as pacientes começaram a receber apoio psicológico. O resultado foi um incremento na resiliência das mulheres.
O que fazer diante de tanta violência? Não há outra escolha a não ser responder com amor
DENIS MUKWEGE
médico e ativista congolês
Outra constatação é que as vítimas, mesmo com o físico e o emocional recuperados, tinham dificuldade de voltar a suas comunidades, onde estavam estigmatizadas por causa do estupro sofrido. Isso levou a um trabalho para torná-las autônomas economicamente, por meio de ajuda para estudar, oferta de microcrédito e capacitação profissional.
Por fim, também é oferecido apoio jurídico, para que os criminosos sejam levados aos tribunais.
— A Justiça é passagem obrigatória e condição sine qua non no processo de recuperação das mulheres. Depois de todo esse processo, a fraqueza é transformada em força, e a mulher não tem mais medo do seu carrasco — observou Mukwege.
Além de denunciar os massacres cotidianos da guerra civil e os ataques contra as mulheres, o ginecologista tem sublinhado que por trás do conflito em seu país há fortes interesses econômicos, ligados à exploração de recursos naturais valiosos. Ele critica o silêncio da comunidade internacional diante dos horrores que ocorrem há duas décadas na RDC e pede às multinacionais que não comprem os "minerais de sangue" que estão por trás da violência.
— As pessoas continuam a ser massacradas todos os dias. Não sabemos por que a comunidade internacional fica em silêncio. Não é uma guerra normal. Não é entre fanáticos religiosos, etnias, Estados. É um combate pelas riquezas minerais. As grandes empresas sabem que esses são minerais de sangue, obtidos pelo martírio das mulheres e a destruição dos seus órgãos genitais. Infelizmente, elas preferem instalar fundições na fronteira do país. Fazer isso sobre o corpo de mulheres é escandaloso.
Por causa dessa postura crítica, Mukwege já foi alvo de seis atentados. Uma tentativa de assassinato ocorrida em sua casa, em 2012, resultou na morte de um segurança e levou-o a buscar refúgio no Exterior. Mas acabou voltando ao Hospital de Panzi no ano seguinte, sensibilizado pela mobilização das mulheres a quem tinha ajudado, que clamaram por seu retorno e juntaram dinheiro para a passagem de volta à RDC, vendendo frutas e verduras.
Respondendo a uma pergunta apresentada pelo mediador da conferência, o jornalista Daniel Scola, Mukwege contou que atualmente mora dentro do hospital e é protegido por soldados das Nações Unidas. Considerado o maior especialista do mundo em reparação interna de genitais femininos, ele não consegue se habituar às atrocidades que são cometidas contra suas pacientes, mesmo realizando até 10 cirurgias por dia. Revolta-se com a impunidade dos perpetradores, mas oferece uma mensagem de paz:
— Ainda compartilhamos a mesma humanidade? O que fazer diante de tanta violência? Não há outra escolha a não ser responder com amor — disse à plateia.
O Fronteiras do Pensamento Porto Alegre é apresentado por Braskem, com patrocínio Unimed Porto Alegre e Hospital Moinhos de Vento, parceria cultural PUCRS, e empresas parceiras Unicred e CMPC. Universidade parceira UFRGS e promoção Grupo RBS.
Fronteiras do Pensamento 2019
Próximos convidados
2 de setembro
Janna Levin – Física teórica e astrônoma norte-americana, é referência na pesquisa sobre buracos negros.
23 de setembro
Werner Herzog – Cineasta alemão que dirigiu clássicos como Fitzcarraldo (1982) alterna registros na ficção e no documentário em temas como a relação do homem com a natureza e tecnologia.
21 de outubro
Contardo Calligaris – Psicanalista, colunista e escritor italiano radicado no Brasil.
11 de novembro
Luc Ferry – Escritor, professor, filósofo e ex-ministro da educação da França, autor do best-seller Aprender a Viver (1996).
Conferências sempre às segundas-feiras, às 19h45min, no Salão de Atos da UFRGS
(Av. Paulo Gama, 110), exceto no dia 21/10, quando será no Salão de Atos da PUCRS.
Os passaportes estão esgotados. Mais informações no portal fronteiras.com e pelo telefone 4020-2050.