Duzentos e cinquenta dias: há mais de oito meses, a menina Caroline, de nove anos, não sofre das convulsões que outrora eram diárias. Diagnosticada com a rara síndrome de Dravet, doença degenerativa que resulta em crises epilépticas, a garota teve o seu quadro revertido após receber tratamento com óleo de canabidiol (CBD), extraído de plantas específicas de maconha cultivadas na residência da família, em Canoas, na Região Metropolitana. O direito da posse e do cultivo em casa foi concedido pelo juiz Roberto Coutinho Borba, da 4ª Vara Criminal da cidade, no dia 9 de abril.
Por lei, plantar e consumir maconha é ilegal, ainda que o uso seja para fins medicinais. A prática pode resultar em prisão por flagrante e pena de cinco a 15 anos de prisão. Com a autorização da Justiça, que dura um ano e pode ser renovada, a família não pode ser presa nem ter o material destruído ou retido. No Brasil, outros casos semelhantes já foram registrados, mas a decisão é inédita no RS.
Com um conta-gotas na mão, Liane Pereira, 50 anos, não segura a emoção ao definir o conteúdo do frasco produzido por ela:
— Esperança de vida da minha filha.
O tratamento exige seis gotas diárias, ininterruptamente, mas fez a família celebrar os dias que a menina se mantém distante das internações.
— A gente aprendeu a contar os dias, porque cada um deles é uma luta — afirma a mãe.
Por mais de cinco anos, a rotina foi de tratamentos com os mais diversos remédios, sem um diagnóstico preciso. A doença foi identificada somente em 2015, e o uso do canabidiol, definido junto à neurologista da paciente, Fernanda Quadros. Antes de utilizar o óleo feito em casa, o tratamento foi feito de 2016 a 2018 com medicação de canabidiol trazida dos Estados Unidos.
— Ela usava sete anticonvulsivantes, mas nunca melhorava. Com o canabidiol, conseguimos tirar todas as outras medicações. E o mais impressionante é a qualidade de vida: ela não conseguia mais falar e usava cadeira de rodas. Depois, ela foi saindo da cadeira, voltou para a escola, voltou a falar e a conversar — relata a médica, que acompanha Carol desde a primeira crise, 25 dias após seu nascimento.
Mas o custo médio mensal do produto importado era de R$ 3 mil. A saída foi realizar empréstimos bancários, fazer rifas e criar, no Facebook, a página Força Carol. Por meio da Justiça, o Sistema Único de Saúde (SUS) ficou responsável por custear a importação durante apenas seis meses.
Mudas vieram da Marcha da Maconha, em São Paulo
Após uma reportagem exibida pelo Fantástico em 2017, da Rede Globo, contar história de uma família semelhante ao drama que viviam, eles decidiram participar da Marcha da Maconha em São Paulo em busca de alguma orientação de pessoas que já produziam o óleo e poderiam lhe informar melhor sobre a planta específica utilizada para a extração do remédio.
Era novidade até para mim. Eu já estudava, mas nunca tinha tratado com o remédio caseiro. A gente foi introduzindo aos poucos, e a melhora foi incrível.
FERNANDA QUADROS
Neurologista
Mesmo sabendo da ilegalidade de transportar a substância, resolveram trazer duas mudas da planta, e uma ampola com 1 ml do óleo caseiro.
— Eu tremia quando passei pelo raio X. Ela toma tarja preta desde os dois meses de vida, e dormia o dia inteiro de tanto remédio pesado. Então, pensei: "Pela minha filha, eu faço qualquer coisa". E encarei — relembra.
Médica da garota, Fernanda Quadros foi pega de surpresa, mas garantiu a eficácia do tratamento:
— Era novidade até para mim. Eu já estudava, mas nunca tinha tratado com o remédio caseiro. A gente foi introduzindo aos poucos, e a melhora foi incrível.
Mais de 20 de seus pacientes são tratados com o princípio ativo da maconha, segundo a neurologista.
O delegado Carlos Wendt, diretor da Divisão de Investigação do Narcotráfico do Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) afirma que o transporte de qualquer substância ou de sementes ou mudas de maconha é ilegal, e pode ocasionar sanções. Os Pereira resolveram correr o risco enquanto a Justiça analisava o pedido de habeas corpus, mas hoje estão livres de qualquer condenação pelo transporte e cultivo.
— Não existe qualquer possibilidade de ela ser responsabilizada, pois foi reconhecido que ela não estava praticando nenhum crime — avalia o juiz Roberto Coutinho Borba, responsável pela autorização da 4ª Vara Criminal de Canoas.
Para ele, casos semelhantes a esse sequer deveriam ter a necessidade de intervenção da Justiça:
— Causa perplexidade como a legislação não alcançou esse estágio de evolução, de perceber que embora tenha entorpecentes, esse vegetal também oferece propriedades medicinais para inúmeras doenças. Não faz sentido ter que entrar na Justiça. Isso poderia ser resolvido de forma mais célere e menos custosa se houvesse uma regulamentação.
Essa é a Carol. Hoje ela tem vida, dança, pula corda, faz bambolê... Antes, quando tinha as crises de ausência, ficava sete, 12 minutos desmaiada.
MARIA ALICE BOTH
Avó de Caroline
Professora municipal em Canoas, a mãe sabe que a doença da filha ainda não tem cura, mas se demonstra emocionada ao imaginá-la, agora, com uma perspectiva na vida adulta:
— Não quero diploma, quero só que ela esteja feliz. Pode ser trabalhando na coisa mais simples, em qualquer lugar, organizando esmalte, por exemplo, que é algo que ela adora.
Elétrica como qualquer criança de sua idade, Caroline entra em casa aos gritos, chama pela avó, pula no sofá da sala, sem dar bola para as ordens da mãe, e distribui beijos.
— Essa é a Carol. Hoje ela tem vida, dança, pula corda, faz bambolê... Antes, quando tinha as crises de ausência, ficava sete, 12 minutos desmaiada. Você não sabe o que é ter alguém desacordado e não poder fazer nada — relembra a avó, a aposentada Maria Alice Both Pereira, 73 anos.
Devido às dificuldades financeiras da família, Maria Alice convidou o genro, a filha e a neta para viverem com ela, evitando o gasto que tinham com um imóvel alugado.
Agarrada à boneca loira de vestido rosa petit poá, a curiosa e inquieta criança é facilmente conquistada com uma conversa, e sai galopando em uma espécie de unicórnio de pelúcia, presente de Páscoa. Os doces são substituídos por brinquedos, pois a menina não tem no paladar o desejo por balas e chocolates.
— Até hoje ela não gosta de doce, pois se acostumou com o gosto amargo dos remédios _ explica a mãe.
Atestado do óleo caseiro
Para conter o olhar dos curiosos e evitar possíveis furtos, o marido de Liane, Juarez da Silva, instalou uma cerca elétrica. A família protege o ambiente com a certeza de que ali está a possibilidade de uma vida melhor para a mais nova dos três filhos:
— O meu maior, de 18 anos, conviveu tanto tempo com a gente no hospital que ele sabe que não é maconha. É o remédio da "mana".
A última vez que ela e o marido – únicos com autorização para manusear os produtos – produziram o canabidiol foi em agosto de 2018, e uma nova leva deve ser preparada esta semana. Além da redução de custos, Liane tem a certeza da qualidade do produto que a filha ingere:
— Não é só o valor. Sei que ela ingere o melhor.
A mãe mostra, então, o parecer do toxicologista Tiago Franco de Oliveira, secretário-geral da Sociedade Brasileira de Toxicologia e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFSCPA). É ele quem atesta a eficácia do óleo artesanal produzido pela família. Segundo o professor, a análise feita em laboratório verificou equivalência das concentrações do CDB e do THC. Essa última substância, se ingerida em níveis extremos, causa efeitos alucinógenos. O especialista ressalta que é necessário cuidado na dosagem.
— Como é artesanal, existe variabilidade. Por mais controlado que seja o ambiente, existe uma variação. Para a segurança, o recomendado é realizar análise constante do que é produzido, inclusive das próximas levas, e nunca ingerir em excesso. Mas é um produto muito diferente da droga de rua, que sofre várias adulterações, além de uso abusivo e recorrente — salienta Oliveira.
O parecer que atestou a qualidade do material produzido pela família canoense foi anexado ao processo judicial, que culminou na obtenção do habeas corpus para a produção caseira da planta.
Preconceito dentro e fora da família
Com a decisão de "transformar a casa em um laboratório", como definiu a avó, a família teve de encarar outro desafio: o preconceito:
— Chegaram a escrever na página do Facebook, a "Força Carol", que era um horror uma mãe dar maconha para a filha de nove anos. Mas a gente não dá bola, sabemos que é o remédio o que importa para a qualidade de vida dela — avalia, relatando ainda que alguns parentes se distanciaram da família após o início do tratamento.
Ainda neste ano, Liane pretende ministrar um curso, com apoio da ONG paulista Cultive. A ideia é debater os benefícios do medicamento extraído da Cannabis, com participação de dois neurologistas, da advogada da família e dos pais que passam por experiências semelhantes.
Apesar de os custos terem sido severamente reduzidos, há outros não cobertos pelo plano de saúde, como a fisioterapia para evitar escoliose na coluna da menina, que já dá sinais de curvatura. Para isso, Liane sonha com uma piscina para que a criança não pare com os exercícios.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) informa que ainda não tem uma regulamentação específica para o plantio de maconha com fins medicinais, mas que "este tema está na pauta da agência para discussão técnica e avaliação de soluções regulatórias".