A busca por uma alimentação mais saudável e a influência de amigos levaram a estudante do segundo ano do Ensino Médio Maria Antônia Saldanha, 16 anos, de Porto Alegre, a mudar os principais hábitos alimentares que a acompanharam até o início da adolescência. A garota, que já evitava fast foods e quase não comia carne vermelha, abandonou o refrigerante em 2016. No ano seguinte, mesmo se identificando como uma apaixonada por salmão e camarão, tomou a decisão mais radical: tornou-se vegetariana.
Depois de pesquisar durante meses sobre o tema, Maria Antônia conta que o anúncio à família foi repentino, deixando os pais, a arquiteta Cláudia Saldanha, 48 anos, e o advogado Roberto Saldanha, 50, em pânico.
— Não foi fácil eles entenderem porque seria uma mudança drástica para toda a família. De início, houve um conflito grande, mas mantive a minha decisão — recorda a adolescente.
Casos como o de Maria Antônia estão se tornando cada vez mais comuns nas famílias brasileiras. Segundo pesquisa do Ibope Inteligência, divulgada em maio deste ano, quase 30 milhões de brasileiros com mais de 16 anos (14% da população) declararam-se vegetarianos — o dobro do constatado em 2012. A própria Sociedade Vegetariana Brasileira afirmou que a escolha já não é mais restrita a um único grupo.
Maria Antônia quebrou a resistência da família ao convencê-los de que era possível repor os nutrientes necessários com uma dieta equilibrada. Depois de seis meses de negociação, por exigência da mãe, a jovem consultou um médico e uma nutricionista e recebeu a orientação de repor a vitamina B12 por três meses. Aos poucos, cozinhando receitas mais leves, como abobrinha recheada e pasta de inhame, conquistou os paladares dos pais e da irmã de oito anos.
— Somos uma família de Alegrete, onde a carne sempre foi o prato principal. Admiro a minha filha por ter escolhido sozinha o estilo de vida que ela deseja seguir. É por um motivo nobre: salvar os animais — orgulha-se a mãe.
Cláudia tem certeza de que todos foram beneficiados pela escolha da filha. Por causa dos novos hábitos, os Saldanha mudaram o as compras da semana. Também passaram a se alimentar de frutas e verduras com mais frequência. A arquiteta comenta, contente, ter emagrecido com saúde.
— A comida é mais leve e nos sentimos saciados. Hoje, olho a carne e já não tenho mais vontade de comer — revela a mãe de Maria Antônia, para alegria da filha que, no futuro, pensa em dar um passo adiante: tornar-se vegana.
O que os especialistas recomendam
A Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) posiciona-se a favor de crianças e adolescentes serem vegetarianos, assim como a Associação Dietética Americana, a Academia Americana de Pediatria e a Sociedade Canadense de Pediatria. No ano passado, de olho no aumento de famílias que estão excluindo da alimentação diária carnes, peixes, aves e seus derivados, a SBP lançou o primeiro guia prático de vegetarianismo na infância e na adolescência. A publicação esclarece dúvidas e alerta os profissionais sobre o atendimento aos pacientes vegetarianos. No texto, a entidade afirma que “se a dieta for balanceada, podemos ter crescimento e desenvolvimento adequados de crianças e adolescentes. A prática do vegetarianismo não deve ser desencorajada, apenas orientada sobre a oferta de micro e macro nutrientes”.
Segundo a nutricionista Tatiana Maraschin, da nutrição clínica da área de pediatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, por serem mais vulneráveis a desenvolver deficiência de nutrientes, os mais jovens devem ser monitorados pelo médico e muitas vezes suplementados. Na maioria dos casos, alerta Tatiana, só a orientação nutricional pode não ser suficiente. É importante o acompanhamento médico para evitar riscos de deficiências principalmente de ferro, cálcio, zinco e vitaminas D, B1, B2, B6 e B12 no organismo em desenvolvimento.
A psiquiatra de crianças e adolescentes e especialista em distúrbios alimentares Olga Garcia Falceto afirma que os filhos precisam se individualizar dos pais, e a alimentação pode ser um meio de fazer isso:
— Muitos adolescentes preocupam-se com o que eles podem mudar na própria vida. E a alimentação é uma via de transformação social. A família precisa estar aberta porque os adolescentes estão atentos a esta movimentação.
OLGA GARCIA FALCETO
Psiquiatra de crianças e adolescentes e especialista em distúrbios alimentares
Para Olga, um dos conflitos atuais entre gerações é a questão da alimentação saudável. As famílias precisam ver que é possível aprender com os adolescentes. E isso não significa que os pais estão abrindo mão de suas crenças, mas aceitando novas possibilidades.
A psicóloga e especialista em psicoterapia infantil e adolescente Bibiana Godoi Malgarim também salienta que esse pode ser um processo importante para os jovens na formação de sua identidade:
— O vegetarianismo é mais do que uma opção alimentar, é uma filosofia de vida. É muito esperado que os adolescentes descubram formas de ser que os diferencie dos pais, isso passa por uma questão de constituição identitária. Entendo que essa opção pode ser acolhida pelos pais que, obviamente, deverão acompanhar o filho para que essa nova alimentação seja rica e não o fragilize em termos de saúde física.
Mudanças positivas na rotina
Vegetariana há três anos, Leticia Raupp Menger, 17 anos, de Porto Alegre, faz check-up médico a cada seis meses. Na mais recente consulta, descobriu que o nível de reserva de ferro está abaixo do esperado. Precisa comer carne semanalmente até o próximo exame.
— Só farei isso até o nível de ferro estabilizar. Depois, volto ao vegetarianismo — promete.
Letícia lembra que a decisão de mudar os hábitos alimentares surgiu depois de muito refletir sobre como seria o funcionamento da indústria da carne. Mas foi um vídeo mostrando o processo do abate à comercialização que fez a jovem abdicar dos famosos churrascos feitos pelo pai, o economista Gerson Menger, 51 anos.
A primeira a saber da decisão foi a mãe, a enfermeira Raquel Menger, 51 anos. Na hora, preocupou-se com alimentação da menina e a possibilidade de lhe faltarem nutrientes. Ao questionar a filha sobre a substituição da proteína, foi surpreendida pelas pesquisas de Letícia: a estudante sabia exatamente como manter-se saudável sem a carne. A consulta com o pediatra chancelou o novo hábito.
— Quando ela veio com esta conversa, fiz uma exigência: que ela continuasse tomando leite e comendo ovos. Segui achando que ia passar, mas não passou. Então, vimos que era necessário a família se adaptar — lembra Raquel.
Letícia recorda que o pai demonstrou maior preocupação com a decisão. Afinal, ela era a responsável pelos elogios mais rasgados ao almoço dominical preparado por Gerson.
— Aos poucos, o pai começou a colocar pimentões, cogumelos, cebolas e queijos na brasa e a vida seguiu para todos — conta a jovem.
Hoje, a mãe fala com orgulho da atitude da filha e de como ela ajudou a dieta da família:
— A mudança de alimentação da Letícia atingiu direta e positivamente a nossa rotina.
Saiba mais
Vegetarianos excluem da alimentação todos os tipos de carne, podendo ou não utilizar laticínios ou ovos. São classificados em:
*Ovolactovegetariano: utiliza ovos, leite e laticínios na alimentação
* Lactovegetariano: não utiliza ovos, mas faz uso de leite e laticínios
* Ovovegetariano: não utiliza laticínios, mas consome ovos
* Vegetariano: não utiliza nenhum derivado animal na sua alimentação
* Vegano: não utiliza qualquer alimento derivado de animal na sua alimentação, nem produtos ou roupas contendo estes alimentos, ou frequenta qualquer diversão que seja às custas de exposição animal (zoológicos, aquários)
Fonte: Vegetarianismo na Infância e Adolescência, guia da Sociedade Brasileira de Pediatria
Atenção redobrada à alimentação
Alguns nutrientes importantes para a saúde de crianças e adolescentes e dicas para mantê-los na dieta sem carne.
Energia
A utilização de alimentos de maior densidade calórica, como produtos à base de nozes, castanhas, macadâmia, amendoim e suas respectivas manteigas, pode contribuir para a maior ingestão de calorias.
Proteína
As maiores fontes de proteínas vegetais são as leguminosas, como lentilha, feijões, grão de bico e soja, além de cereais, nozes e sementes. Como a quantidade, a qualidade e a digestibilidade destas fontes são muito diferentes, o que garante a oferta adequada de aminoácidos essenciais é o consumo variado desses alimentos.
Gordura
O consumo de gordura deve variar de 25% a 35% do total de calorias da dieta. A ingestão menor que 25% das calorias provenientes de gorduras pode levar ao comprometimento do crescimento e valores abaixo de 15%, deficiência de ácidos graxos essenciais.
Fibras
O consumo regular de alimentos ricos em fibras como vegetais, frutas e grãos está associado à redução do risco de obesidade, constipação, doenças cardiovasculares e câncer. Peneirar ou amassar os cereais e outros vegetais e substituir parte do cereal integral por um mais refinado pode aumentar a quantidade ingerida e consequentemente a ingestão de calorias.
Ferro
O ferro exerce funções vitais no organismo. É recomendável que a ingestão de ferro por crianças e adolescentes vegetarianos seja de 1,8 a 2 vezes maior do que a daqueles que comem carne, já que o nutriente disponível em vegetais, frutas e cereais é menos aproveitado pelo organismo do que aquele vindo das carnes.
Zinco
É crucial para o crescimento e o desenvolvimento. Cereais, grãos integrais, soja, feijões e lentilha são alguns alimentos ricos em zinco. Grãos germinados e cereais fortificados também são boas fontes.
Cálcio
Vegetais como brócolis, couve, quiabo, nabo, soja e alimentos fortificados podem ser fontes de cálcio. Alimentos ricos em oxalato (espinafre, beterraba, batata doce e feijões) e os ricos em fitatos (sementes, grãos, nozes e isolados de soja, feijão) diminuem a absorção de cálcio, e os carboidratos e a vitamina C melhoram essa absorção. A falta de cálcio e outros minerais acarreta prejuízo na formação da massa óssea.
Vitamina A
Frutas e vegetais amarelos-escuros, ricos em betacaroteno como cenoura, manga, mamão, damasco, abóbora, tomate, ervilha e batata doce suprem os requerimentos diários na dieta vegetariana se houver o consumo variado desses alimentos. A utilização de óleo no preparo aumenta sua absorção e o cozimento prolongado e o congelamento podem levar à perda em torno de 10% a 50%.
Vitamina B2 - Riboflavina
São fontes de riboflavina: aspargo, banana, feijão, brócolis, figo, couve, lentilha, ervilhas, tahine (manteiga de gergelim), batata doce, tofu e germe de trigo.
Fonte: Vegetarianismo na Infância e Adolescência – Guia Prático do Departamento Científico de Nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria