Pessoas com ascendência asiática e europeia – quase qualquer um que não seja originário da África – herdaram uma porção de DNA de alguns ancestrais incomuns: os neandertais. Esses genes são o resultado de cruzamentos repetidos, muito tempo atrás, entre os neandertais e os humanos modernos. Mas por que esses genes ainda existem 40 mil anos depois da extinção dos neandertais?
Ao que parece, alguns deles podem proteger os humanos contra infecções. Em um estudo publicado na quinta-feira passada (4), cientistas relataram evidências de que os homens modernos encontraram novos vírus – inclusive alguns relacionados com a gripe, o herpes e o HIV – quando saíram da África cerca de 70 mil anos atrás.
Algumas dessas infecções podem ter sido pegas diretamente dos neandertais. Sem imunidade contra os patógenos com os quais nunca haviam tido contato, os humanos modernos eram particularmente vulneráveis.
— Na verdade, conseguimos não apenas dizer "sim, os humanos modernos e os neandertais trocaram vírus". Podemos começar a dizer alguma coisa sobre os tipos de vírus envolvidos nessas trocas — diz David Enard, biólogo evolucionário da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, e um dos autores da nova pesquisa, publicada no jornal Cell.
No entanto, se os neandertais nos deixaram doentes, eles também nos ajudaram a nos manter saudáveis. Alguns dos genes herdados por meio dos cruzamentos protegeram nossos ancestrais dessas infecções, assim como os protegiam.
Lluis Quintana-Murci, geneticista do Instituto Pasteur de Paris, que não participou da pesquisa, diz que até agora os cientistas nem sonhavam em vislumbrar a história médica distante de nossa espécie.
— Cinco anos atrás, nunca teríamos imaginado isso — afirma.
Nosso sistema imunológico mata os vírus com um arsenal de armas, como anticorpos e sinais que fazem com que as células infectadas se autodestruam. Mas Enard começou sua pesquisa se perguntando se os humanos desenvolveram outras maneiras para evitar as infecções.
Os vírus não conseguem se replicar sozinhos. Eles se apropriam de proteínas dentro de nossas células para fazer o trabalho pesado, copiando genes virais e construindo novas cápsulas para colocá-los. Se essas proteínas mudassem de formato, no entanto, seria mais difícil para os vírus usá-las para se multiplicar.
— Em vez de uma estratégia em que você ataca o vírus, você corre dele — afirma Enard.
Para aprender se isso é uma defesa real que o corpo usa, Enard precisava encontrar todas as proteínas humanas conhecidas por interagir com pelo menos um vírus. Essa lista, porém, não existia.
Depois de construir um catálogo de 1,3 mil proteínas – o que levou quatro meses –, ele estudou sua história evolucionária. Comparando essas proteínas em espécies diferentes, descobriu que várias tinham mudado ao longo do curso da evolução.
Nos vários milhões de anos desde que nossos ancestrais se separaram de outros primatas, um terço das mudanças adaptativas em nossas proteínas aconteceu entre aqueles que interagiram com vírus. E essa descoberta notável levou Enard e o doutor Dmitri Petrov, biólogo evolucionário da Universidade Stanford, a se perguntarem sobre os neandertais.
O ancestral comum tanto dos humanos modernos quanto dos neandertais viveu cerca de 600 mil anos atrás, provavelmente na África. Os neandertais deixaram o continente muito antes dos humanos modernos e se espalharam por uma área enorme, da costa da Espanha à Sibéria, antes de se tornarem extintos.
A partir do exame de fósseis, cientistas foram capazes de reconstruir genomas inteiros de neandertais. E descobriram que pessoas de hoje, sem ancestrais africanos, carregam de 1% a 2% do DNA dos neandertais. Esse DNA remanescente entrou em nosso patrimônio genético por meio de intercruzamentos. Depois que os neandertais se tornaram extintos, seu DNA gradualmente diminuiu em nossos genomas.
É provável que a maioria dos genes dos neandertais tenha sido prejudicial a nossa saúde ou tenha reduzido nossa fertilidade e, portanto, acabou perdida nos seres humanos modernos. Mas alguns desses genes se tornaram mais comuns, provavelmente porque proporcionaram algum tipo de vantagem evolucionária.
Nos últimos anos, os pesquisadores descobriram que alguns desses genes codificam proteínas produzidas por células do sistema imunológico. Eles especularam que os humanos modernos se beneficiavam do empréstimo de genes dos neandertais para combater infecções.
Enard e Petrov tinham uma pergunta mais específica: os humanos modernos adquiriram genes que ajudaram as células a escapar de vírus específicos alterando os formatos das proteínas celulares?
Os pesquisadores se debruçaram sobre os genomas de asiáticos e europeus vivos e descobriram que uma grande parte desses genes dos neandertais faz proteínas que interagem com os vírus.
Os vírus que infectavam os neandertais possivelmente representaram uma grande ameaça para os humanos modernos quando eles deixaram a África. Eles não possuíam imunidade contra essas infecções. Mas os neandertais, sim, e por meio de cruzamentos, forneceram defesas genéticas aos humanos modernos.
— É como se eles tivessem trazido a faca, mas também o escudo — explica Petrov.
Enard e Petrov também descobriram pistas sobre contra que tipo de vírus exatamente esses genes dos neandertais podem nos proteger.
Nos humanos de hoje, várias das proteínas feitas por esses genes interagem apenas com o vírus da gripe, por exemplo. Outras apenas com o HIV.
— Não estamos dizendo que os vírus que infectam a população humana hoje vêm dos neandertais — afirma Enard. — Já foi provado, por exemplo, que o HIV chegou aos humanos apenas um século atrás a partir dos chimpanzés.
Em vez disso, é provável que os humanos modernos tenham sido infectados com um parente antigo do HIV. Enard não pode dizer como eles foram expostos ao novo patógeno – talvez por meio de sexo com os neandertais ou se alimentando com os animais que todos caçavam.
Está claro, porém, que para bilhões de pessoas vivas hoje, os genes dos neandertais provavelmente desempenham um papel importante na defesa contra esses vírus.
— Não somos nada a não ser o resultado do nosso passado — afirma Quintana-Murci.
Por Carl Zimmer