Última grande fronteira da colonização humana antes da Antártida, o continente americano foi durante milhões de anos um vasto território desocupado, isolado do mundo por geleiras que impediam qualquer passagem. Era distante demais - além de, até então, desconhecido - para ser alcançado por vias marítimas. Há cerca de 20 mil anos, porém, a vontade de nossos antepassados de desbravar estas terras superou a dificuldade de chegar até aqui.
A origem desses primeiros americanos ainda é um mistério a ser desvendado. A teoria mais aceita dava conta de que o homem ocupou o continente americano vindo da Ásia, cruzando as vastidões gélidas da Sibéria em busca de uma nova área para habitar. Mas dois recentes estudos adicionaram um ingrediente inesperado a essa migração: alguns povos indígenas da América carregam em si claras ligações genéticas com aborígenes da Austrália e nativos de Papua-Nova Guiné, habitantes da então região conhecida como Austromelanésia.
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O parentesco fica claro nas feições de populações indígenas da Amazônia e do cerrado brasileiros. Pesquisas anteriores envolvendo a morfologia de crânios encontrados no continente já haviam apontado alguma semelhança entre o povo de Luzia (veja quem é no infográfico acima) e austromelanésios, mas nunca antes qualquer sinal genético havia sido detectado.
- O resultado que obtivemos nos surpreendeu muito, pois não havia nenhum indício genético anterior que apontasse nessa direção de uma população povoadora da América vinda do sudeste da Ásia - afirma a professora da Universidade de São Paulo (USP) Tábita Hünemeier. - Usamos nesse estudo informação de todo o genoma de populações indígenas da América do Sul e austromelanésias.
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A descoberta torna ainda mais complexa a já intrigante história da ocupação humana das Américas. Como é possível que populações inteiras tenham migrado não apenas da região siberiana - território inóspito, porém habitado -, mas também do sudeste da Ásia? É aí que os estudos divergem.
Se, por um lado, a identidade austromelanésia fica clara, por outro os artigos sobre o tema publicados nas prestigiadas revistas científicas Nature e Science no final de julho encontram hipóteses diferentes para o processo de migração.
Algumas hipóteses em jogo
O estudo da Nature - com a participação dos pesquisadores da UFRGS Francisco Salzano (leia entrevista abaixo) e Maria Cátira Bortolini, além de Tábita Hünemeier, da USP, e Maria Luiza Petzl-Erler, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) - aponta que duas populações diferentes se misturaram durante uma longa parada na região do estreito de Bering antes de chegar às Américas.
Já o artigo da Science - que tem a arqueóloga brasileira Niède Guidon entre seus colaboradores - defende que uma grande onda migratória veio da Sibéria no começo dessa ocupação e, posteriormente, grupos aparentados dos povos da Oceania se uniram à migração.
- Não creio que estamos em total desacordo. Nossas conclusões estão alinhadas com algumas das teorias propostas na Nature, e as divergências estão apenas no campo de especulação das causas dessa surpreendente afinidade entre os povos - garante o dinamarquês Rasmus Nielsen, geneticista da Universidade da Califórnia em Berkeley e um dos autores do estudo publicado na Science.
A professora da UFRGS Maria Cátira Bortolini concorda. Sua pesquisa sugere que a migração do sudeste da Ásia não aconteceu de uma vez só, mas passou por etapas até chegar à Beríngia (território que unia os continentes asiático e americano no período glacial), onde já se encontravam povos siberianos.
- Se você fica muito tempo em um lugar, acaba criando marcas, mudanças específicas que se refletem no DNA. Nesse período na Beríngia, acreditamos que houve uma miscigenação que resultou no surgimento dos primeiros americanos - explica.
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Para o professor da PUCRS Sandro Bonatto, que fez seu doutorado em genética abordando o povoamento das Américas, a descoberta abre caminho para uma série de hipóteses, que só poderão ser esclarecidas com mais dados arqueológicos e estudos de genoma:
- Isso mostra como os humanos migram para tudo que é lugar. Somos mesmo uma população nômade, mas não deixa de ser surpreendente que o genoma de alguns grupos seja ainda mais complexo do que se esperava.
Foto: Júlio Cordeiro, BD, 09/02/2006
Aos 87 anos, mais de 60 deles dedicados à ciência, o geneticista Francisco Salzano é uma das maiores referências na área - e tem especial interesse pela origem americana. Dono de honrarias como a Ordem do Mérito Científico Brasileiro e uma vaga na Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, o pesquisador conversou com Zero Hora em sua sala na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O senhor viu teorias sobre a ocupação americana surgirem e serem derrubadas. O que mudou nesses anos?
Principalmente a tecnologia. Existem desde o século 19 hipóteses e também especulações sobre a origem do homem americano. Essas investigações tomaram um rumo mais eficiente, digamos, a partir dos estudos de genômica - em vez de estudar só um determinado fator genético, a gente estuda praticamente todo o material genético dos indivíduos.
A comprovação desses laços descendentes da Oceania contraria ou embasa hipóteses já existentes?
A ideia de que poderia ter havido alguma entrada de material fora da Ásia é antiga, mas ela era baseada principalmente em migrações através do Pacífico que, tanto quanto a gente possa avaliar agora, não foram possíveis. Outra alternativa foi proposta há duas décadas por um pesquisador brasileiro, Walter Neves, que através do exame da morfologia sugeriu que, além dessa entrada de pessoal da Ásia, teria havido também uma outra contribuição genética de um grupo mais antigo em termos evolucionários. E isso se refletiria em semelhanças com material de grupos não-asiáticos. As recentes descobertas podem até embasar essa teoria.
Como esses povos do sudeste da Ásia conseguiram chegar até aqui?
Até pouco tempo, os estudos genômicos apontavam sempre para uma só migração, basicamente da Ásia, e portanto não davam confirmação a essa hipótese de um negócio mais antigo. E agora encontramos que, em cerca de 2% dos genomas de alguns dos grupos que estudamos, se verificou essa assinatura genética: um sinal de uma população não asiática. Então, a interpretação que estamos fazendo é de que isso deve ser um resquício daquele grupo ancestral que se manteve ao longo dos tempos, inclusive participando do genoma desses povos asiáticos.
O que ainda é preciso descobrir para, enfim, desvendar essa origem?
São necessários novos estudos em material antigo. Nosso estudo é baseado em material recente, de pessoas vivas, e o grande desenvolvimento técnico dessas últimas décadas é a possibilidade de se estudar de maneira apropriada o DNA antigo, que provém de material de 10, 20 mil anos atrás. Isso abre novas perspectivas para toda a área da evolução humana. E não só em relação ao povoamento das Américas, mas toda uma área de investigação paleoantropológica mundial. Mas, por enquanto, as interrogações continuam. É próprio da ciência: quanto mais se estuda, mais se encontram novos problemas. Ainda falta responder muita coisa.