Entre tantos ressentimentos, Tieli Martins Silbershlach, 32 anos, carrega um intensamente doído. Mãe de Bianca, um ano e sete meses, a dona de casa nunca viu a filha sorrindo. A menina sofreu uma parada cardíaca ao nascer, no Hospital Universitário de Santa Maria (Husm), teve seu óbito atestado pela equipe médica e foi descoberta ainda com vida horas depois, no setor de descarte.
Bianca sofre de microcefalia (o cérebro é menor do que o normal) e hidrocefalia (há acúmulo de líquido no crânio, impedindo o desenvolvimento cerebral), já foi submetida a 25 procedimentos cirúrgicos de vários portes – o último, de alta complexidade, no Hospital da Criança Santo Antônio, em Porto Alegre, na terça-feira (25) – e apresenta uma série de problemas de desenvolvimento.
Tieli sabe que a filha fica feliz ao entrar na piscina da residência da família, na cidade da Região Central. É uma interpretação típica de mãe, baseada mais em sensações do que em fatos, uma leitura perspicaz da face pouco expressiva da caçula. Lembranças do último verão a emocionam.
— Ela adora ficar na água. Ela muda. O rostinho tinha uma fisionomia feliz. Ela demonstrava estar feliz, fazia uma carinha que parecia que ia sorrir... Mas não era um sorriso aberto — lamenta Tieli, em entrevista concedida a GaúchaZH na Casa de Apoio Madre Ana, que abriga famílias de baixa renda em atendimento no complexo da Santa Casa, onde ela e o marido, o borracheiro Marcos Renato dos Santos Cézar, 31 anos, estão hospedados desde sexta-feira.
O drama da família ganhou notoriedade quando a situação da pequena paciente se agravou de novo. Bianca necessitava de uma operação cardíaca, especialidade de que o Husm não dispõe. Transferida para a Capital, está no período mais delicado da recuperação, depois de uma intervenção que lhe cortou o peito para que os médicos tratassem uma endocardite (infecção no coração) e trocassem drenos que desviam o excesso de liquor da cabeça para o coração.
Em 6 de fevereiro de 2017, Tieli passou por uma cesárea de urgência, com 34 semanas de gestação, devido a complicações de sua hipertensão. Com a comunicação do suposto óbito, Cézar deu início à tarefa de noticiar o intolerável aos familiares. Ligou para mãe, sogra, cunhado, primogênito – hoje com 11 anos.
— Ela não sobreviveu — informava, chorando.
Após nascer, quase morrer e “ressuscitar” – cogita-se que as drogas injetadas no bebê nas tentativas de reanimação tenham surtido efeito só depois –, Bianca passou os primeiros quatro meses no Husm. No que mais se assemelhou à normalidade, Tieli amamentou a filha, com empenho e persistência, até os seis meses. Quase uma dezena de internações vieram após a primeira alta.
As temporadas em casa foram atribuladas. Os gastos com medicamentos e leite especial batiam em R$ 1 mil mensais, fora o dinheiro do vaivém de táxi para sessões de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, além de viagens à Capital para o tratamento da surdez (a menina usa aparelho auditivo nos dois ouvidos). Cézar nem sempre podia largar o serviço para acompanhar a esposa e a filha, e Tieli não conseguia se deslocar de ônibus com a menina.
Bianca enfrentou crises diárias de choro que duravam quatro horas ininterruptas ou até mais. Ela sofre também de ataques de irritação, grita, contorce-se e precisa ter as mãos contidas ou arranha a barriga até sangrar. As convulsões, com remédio, estão sob controle. Nos piores momentos, Tieli a embalava nos braços sem parar, chorando também:
— Calma, amor, já vai passar.
Desejo de voltar para casa
Tieli quer voltar a Santa Maria. Almeja pequenas singelezas, vividas na primeira experiência com a maternidade, mas muitas, provavelmente, impossíveis agora. Gostaria de ouvir a filha falando “mamãe”, “papai” e “mano”, brincando e caminhando. Esboça um sorriso ao se imaginar levando a menina até a pracinha.
— Como você se sente quando vê outras mães fazendo isso? — pergunto.
— Fico feliz por elas não estarem no meu lugar.
— Mas você queria estar no lugar delas.
— Queria. Queria muito.
Eram quase 14h da última segunda-feira (24), e Tieli já espiara o relógio mais de uma vez em uma hora de entrevista. Queria voltar para o hospital, onde o marido a substituía para que ela tentasse descansar na Madre Ana. Não aguenta ficar muito tempo longe da filha:
— Ela é minha bonequinha, é linda, é tudo. Vou cuidar dela sempre, sempre, sempre. Seja no hospital, onde for, vou estar sempre com ela.