Em 2016, D. (nome fictício), então com 14 anos, começou a pensar em desaparecer para sempre. Era uma dor interna, uma solidão que não sabia explicar como havia se iniciado. Quando tentava comentar com o pai e a mãe sobre a tristeza profunda que a acompanhava, a garota de Capão da Canoa, no Litoral Norte, ouvia que era “frescura da adolescência”. D. queria fazer terapia, mas não teve o consentimento dos pais.
A saída encontrada foi ingressar num grupo de WhatsApp em que adolescentes de diferentes partes do Brasil compartilhavam angústias parecidas, como a falta de espaço, o isolamento e a ausência de alguém em casa com quem conversar. Mas D. acredita ter recebido influência negativa: acabou tornando rotina as automutilações. Achava que cortando o próprio corpo reduziria o sofrimento que carregava no peito.
Nesse período, repetiu o ano escolar pela primeira vez. O vazio se tornou maior quando, em menos de 12 meses, 22 dos 50 jovens que faziam parte do grupo de Whats tiraram a própria vida. D. tentou fazer o mesmo, mas desistiu quando lembrou-se da irmã mais nova.
No início de 2018, já cursando o Ensino Médio na Escola Estadual de Ensino Médio Luiz Moschetti, no centro de Capão da Canoa, D. procurou a orientadora educacional Maribel Cherutti, 56 anos, e a professora e psicóloga Fabíola Silveira, 40, e pediu a ajuda delas.
Maribel e Fabíola desenvolvem um projeto ainda incomum nas escolas públicas do Estado. Em março deste ano, as duas convidaram mais de 500 estudantes da Luiz Moschetti para participarem, sob permissão dos responsáveis, de grupos de conversa sobre depressão, automutilação e suicídio. Por meio dos próprios alunos, com idades entre 11 e 17 anos, as professoras souberam que a maioria dos pais se surpreendeu com as solicitações dos filhos.
— O grupo da escola me salvou — afirma D. — Percebi que havia muitos na mesma situação. Guardar o que sentimos é muito ruim, uma tortura psicológica. Meu pai, principalmente, tem dificuldade de aceitar. Ele fala que eu não tenho depressão, que é frescura minha. Sou acolhida na escola. Para quem enfrenta o que enfrentei, digo para procurarem ajuda rápido com um responsável ou um familiar que confie, porque sofrer sozinho não é bom. Compartilhando, a gente melhora.
Os estudantes estão divididos em grupos por faixa etária e situações específicas. Cada encontro começa com a mesma pergunta, respondida por quem sentir vontade: como foi a tua semana? As professoras também reúnem no WhatsApp os estudantes que fazem parte das rodas de conversa: muitos deles não conseguem esperar uma semana para exprimir o que estão sentindo.
Trabalhamos para que os filhos deem o primeiro passo, aquele abraço que está guardado há muito tempo. E o resultado é que temos recebido relatos lindos de reencontro dentro de casa.
FABÍOLA SILVEIRA
Professora e psicóloga
— A questão afetiva é muito séria. O relato deles é de se sentirem filhos fantasmas dentro de casa. Lamentam jamais terem recebido um abraço do pai ou da mãe, ou nunca terem ouvido uma palavra de incentivo. Trabalhamos para que os filhos deem o primeiro passo, aquele abraço que está guardado há muito tempo. E o resultado é que temos recebido relatos lindos de reencontro dentro de casa entre mães e filhos, pais e filhos – comemora Fabíola.
Histórias como a de Capão de Canoa motivaram o projeto Comissão Interna de Prevenção de Acidentes e Violência Escolar (Cipave), da Secretaria Estadual da Educação (Seduc), a realizar um levantamento até então inédito nas 2,5 mil escolas estaduais do Rio Grande do Sul, no primeiro semestre de 2018. No mapeamento, as direções foram questionadas sobre a quantidade de casos confirmados de automutilação e de suicídios entre os estudantes. Das 1.622 instituições que encaminharam respostas, 357 relataram 1.015 episódios de automutilação. Outras 101 confirmaram 169 tentativas de suicídio e seis mortes por suicídio, somente entre janeiro e junho de 2018.
Segundo a coordenadora da Cipave, a policial civil e professora Luciane Manfro, os números são apenas a amostra de uma realidade até então pouco discutida no ambiente escolar. Para este semestre, a comissão alterou o questionário, incluiu uma pergunta específica sobre as tentativas de suicídio, e reforçou a importância de respostas por parte das escolas. Depois do levantamento, a coordenadora acionou o alerta vermelho entre as coordenadoras estaduais e, aos poucos, começou a receber relatos e pedidos de ajuda de diferentes regiões. A alternativa foi buscar parcerias com universidades, psicólogos e psiquiatras voluntários e ONGs dedicadas ao tema – Amor-Exigente, Escola da Vida e CVV são algumas delas – para o desenvolvimento de trabalhos permanentes nas escolas.
Conforme o monitoramento semestral do Cipave, a região de Osório, da qual a Luiz Moschetti faz parte, reúne a maior quantidade de automutilações relatadas – 89 no total, sendo 20 em uma única escola de Imbé. A comissão ainda não sabe informar o motivo do índice elevado. Uma parceria com duas universidades da região possibilitou palestras com psicólogos e estudantes de Psicologia nas instituições. Entre os temas, prevenção à vida e afetividade.
Na Luiz Moschetti, o pedido de ajuda dos alunos havia sido percebido em 2017, quando a orientadora educacional Maribel decidiu conhecer os perfis dos estudantes do 6º ano ao Ensino Médio. O material seria repassado aos professores para auxiliar na produção das aulas do semestre. Cada aluno recebeu o desenho de uma cabeça vazia, onde ele deveria expressar os próprios pensamentos. Surgiram poesias, palavras soltas e rabiscos coloridos onde sobressaíram os temas sexo, alimentação, escola, família, saudade, tristeza e depressão. Houve quem tentasse escrever uma carta inteira sobre a própria vida.
— Tenho quase 30 anos de docência e não foi difícil ver que eles estavam pedindo socorro — revela a orientadora.
A situação foi levada à direção e optou-se por chamar os estudantes e seus familiares para conversas com Maribel. Vieram histórias de abandono materno e paterno, solidão, isolamento, falta de convívio familiar e abuso sexual. Com o consentimento dos responsáveis, a orientadora encaminhou os alunos ao serviço público de saúde mental, tornou-se ainda mais presente na vida deles e virou referência de aconselhamento para a comunidade escolar.
A chegada de Fabíola, em setembro do ano passado, reforçou o acompanhamento, ampliando a confiança dos estudantes. Em dezembro de 2017, as professoras conseguiram evitar que um adolescente do 3º ano do Ensino Médio se matasse. Foi um amigo dele quem avisou a escola sobre a intenção, programada para ocorrer naquela noite. Maribel e Fabíola acionaram imediatamente a família e o serviço de saúde municipal. A ocorrência levou as professoras a criarem as rodas de conversa, como tentativa de ajuda aos alunos.
O alerta dos psiquiatras
Coordenador do Programa de Depressão na Infância e Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre e professor do departamento de Psiquiatria da UFRGS, o psiquiatra Christian Kieling aponta a importância de os pais estarem atentos aos sinais de mudança de comportamento que possam indicar depressão. Por exemplo, o adolescente que ia bem na escola e que, de uma hora para outra, começa a tirar notas vermelhas. Ou aquele que se nega a fazer o que gostava. Ele destaca dois sintomas principais da depressão usados para a triagem dos que deverão ser avaliados com mais profundidade: alterações repentinas de humor, o humor irritável, e a anedonia, diminuição ou perda da capacidade de sentir prazer.
Kieling frisa que os pais também estão se sentindo excluídos pelos filhos ao serem trocados por aparelhos digitais, como celular e televisão. Sem sucesso na conversa, deixam de tentar contato, tornando o ciclo vicioso.
Quando estiverem com seus filhos, não importa que sejam cinco minutos, estejam com eles de fato, escutando mesmo quando parecer banalidade. E evitem fazer comparações de como o pai ou a mãe faria se a situação ocorresse com um deles.
SARA SGOBIN
Psiquiatra
— Muitas vezes, só conseguir compartilhar com alguém o que está sentindo pode ter um efeito bastante importante para o indivíduo que precisa falar. Por isso, alguém tem de tomar a iniciativa da conversa. E, via de regra, esperamos que os pais tomem esta iniciativa, por terem mais experiências de vida — afirma o médico.
Para a psiquiatra Sara Sgobin, que estuda a automutilação e o comportamento suicida na adolescência, o problema é a transferência de responsabilidade da criação dos filhos para as "babás eletrônicas" (celulares, tablets e TVs). Sara ressalta que o importante não é a quantidade de tempo disponibilizada dos pais para os filhos, mas a qualidade deste tempo. É necessário conversar prestando atenção, de fato, no que os jovens têm a dizer.
— Vejo pais que, ao voltarem do trabalho, se sentam com a família e não estão presentes. A cabeça está no trabalho ou em outras preocupações. Isso atrapalha a comunicação. Quando estiverem com seus filhos, não importa que sejam cinco minutos, estejam com eles de fato, escutando mesmo quando parecer banalidade. E evitem fazer comparações de como o pai ou a mãe faria se a situação ocorresse com um deles. Só comentem se o filho perguntar — recomenda Sara.
A psiquiatra Berenice Rheinheimer, Coordenadora do Comitê de Prevenção do Suicídio, criado pela Associação de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (APRS), ressalta que nem sempre a automutilação ocorre vinculada ao desejo de morte. Os jovens, conforme ela, têm vontade de se cortar para aliviar a angústia por algum outro motivo. De acordo com Berenice, já existe a discussão para se criar um diagnóstico diferente para automutilação na classificação geral de doenças mentais. O nome seria autoinjúria não suicida, a automutilação especificamente sem o objetivo de morrer.
Responsável pela internação de adolescentes nos cinco leitos disponíveis para casos psiquiátricos no Hospital Presidente Vargas, na Capital, Berenice aponta que 80% das pacientes internadas sofreram abuso sexual. Na maioria dos casos, a internação ocorre por tentativa de suicídio ou ideação suicida, com histórico de automutilação.
— O grupo que faz uma tentativa ou que se automutila precisa ser acompanhado, ter um tratamento médico, porque tem 10 vezes mais chances de morrer de suicídio no futuro se não fizer um tratamento psiquiátrico — reforça.
Berenice pretende criar um banco de dados sobre os casos de tentativas de suicídios de adolescentes, porque essa informação nem sempre chega aos serviços de saúde. Apesar da carência de dados concretos, a especialista percebe aumento nos atendimentos de jovens que tentaram tirar a própria vida.
A psiquiatra aponta o peso do Efeito Werther — uma referência ao livro Os Sofrimentos do Jovem Werther, escrito por Goethe, que, na época, no século 18, inspirou uma onda de suicídios em jovens.
– Quanto mais jovem, mais imatura a pessoa, e nisso entram os adolescentes. Principalmente, aqueles que estão na adolescência inicial, entre 12 e 14 anos. Quanto mais imaturos, mais eles imitam as tentativas de suicídio e também as automutilações. Eles recebem a notícia de colegas que fazem isso e imitam – explica a especialista.
O perigo da solidão
As lesões autoprovocadas (tentativas de suicídios e automutilações) passaram a fazer parte das doenças e agravos de notificações compulsórias do Ministério da Saúde em 2011.
Os casos são informados via Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) e registrados também pelo Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs). Em 2016, o Cevs criou o Comitê Estadual de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio do RS, com representantes de diferentes secretarias e instituições não governamentais, para discutir e encontrar soluções para o problema.
É necessário que os serviços de saúde notifiquem imediatamente os casos atendidos. Só assim saberemos onde estão estes jovens que precisam de atendimento na saúde mental.
ANDRÉIA VOLKMER
Coordenadora do Comitê Estadual de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio do RS
Segundo a coordenadora do Comitê, Andréia Volkmer, a rede é orientada a informar os casos que entram via serviços de saúde, mas nem sempre todos chegam ao atendimento médico. Andréia sustenta que as notificações dos últimos cinco anos demonstram a existência de um aumento de lesões autoprovocadas entre os adolescentes do Estado e uma sensibilização crescente da rede de saúde à situação.
Em 2013, foram 487 registros de lesões autoprovocadas. No ano passado, 1.872 – o maior número nos últimos cinco anos. As mortes por suicídios também aumentaram nesta faixa etária, comparando-se os dois períodos. Em 2013, 60 foram registradas. Em 2017, o número chegou a 69. Nos primeiros oito meses de 2018, 24 suicídios de adolescentes estão contabilizados.
— É necessário que os serviços de saúde notifiquem imediatamente os casos atendidos. Só assim saberemos onde estão estes jovens que precisam de atendimento na saúde mental. A orientação do Estado para as escolas é que os profissionais precisam estar alinhados na questão do conhecimento sobre o fenômeno. Por isso, realizamos seminários anuais e capacitações para discussão do tema — destaca Andréia.
Em 2017, o Comitê criou o Observatório de Análise de Situação do Suicídio, que estuda por regiões os motivos que levam os gaúchos, incluindo crianças e adolescentes, a se matarem. Conforme a psicóloga Claudia Weyne Cruz, integrante da equipe, o objetivo é construir planos regionais de prevenção:
— Muitas mortes podem ser evitadas quando os sinais de alerta são identificados a tempo. Por vezes, as pessoas veem na morte a única saída para o sofrimento que as aprisiona, mas a vida sempre pode triunfar. Para tanto, o amparo da família e o atendimento em saúde adequado são fundamentais.
Desde a década de 1960, o Centro de Valorização da Vida (CVV) presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio aos que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. Em 2017, o serviço passou a operar com um único número para todo o Brasil, o 188. Além da linha telefônica, existe o CVV Comunidade, que vai às escolas e entidades abordar temas relacionados à prevenção da vida.
Coordenadora da unidade Porto Alegre e voluntária do programa há cinco anos, Liziane Eberle conta que os adolescentes passaram a procurar o serviço com mais frequência a partir do lançamento da série 13 Reasons Why, da Netflix, no início do ano passado. Liziane lembra que eles ligavam dizendo "sabe aquela série que está passando? Eu me sinto como a Hannah (personagem da série que tira a própria vida)".
A maioria dos adolescentes alega não ter com quem falar. Outra descoberta de Liziane, que também realiza atendimentos por telefone, foi o aumento do número de crianças de até 12 anos pedindo ajuda. Alguns colegas chegaram a pensar que se tratavam de trotes.
— Descobrimos que essas crianças que nos ligam são aquelas que passam o dia no quarto, sozinhas, e que não têm com quem brincar. Eles dizem "a mãe tá na cozinha e o pai, na sala. Eu chego da escola e estou sozinho". Ela pode estar com problemas e os pais não sabem – adverte.
O levantamento
Das 1.622 escolas estaduais que responderam ao questionário da Cipave, 357 relataram 1.015 situações de automutilação. Outras 101 confirmaram 169 tentativas de suicídio e seis mortes por suicídio, somente entre janeiro e junho de 2018.
Preste atenção
Sintomas de depressão
- Alteração de padrão de sono – dorme mais
- Alteração de padrão de apetite
- Alteração de humor: pode ter choro frequente ou apenas demonstrar a alteração em atitudes mais impulsivas (se era uma criança ou adolescente calmo e passa a demonstrar irritação com situações comuns da rotina)
- Sentimentos de desesperança, desamparo e desespero
- Desânimo
- Queda no rendimento escolar
- Pensamento negativo
- Diminuição de prazer
- Isolamento
- Tédio (não tem nada para fazer)
- Uso contínuo de roupas compridas em períodos de calor
- Uso de pulseiras para esconder os braços
Causas que podem desencadear a depressão
- Abuso de substâncias
- Abuso físico e sexual na infância
- Bullying
- Desemprego, perda recente do emprego ou endividamento dos pais
- Dificuldade de integração e socialização na escola
- Dificuldades em relação a identidade e orientação sexual
- Histórico familiar de transtorno psiquiátrico
- Problemas emocionais, familiares e sociais
- Rejeição familiar
- Situações de luto
- Situações de assédio moral
- Trabalho infantil
- Violência familiar
FONTES: psiquiatras Berenice Rheinheimer, Sara Sgobin e Christian Kieling, psicóloga Claudia Weyne Cruz e manual de bolso do Comitê de Promoção da Vida e Prevenção do Suicídio do RS