Não estamos em um campo de guerra, mas, diariamente, respiramos um ar que pode nos matar. Segundo levantamento divulgado em maio pela Organização Mundial da Saúde (OMS), nove em cada 10 pessoas no mundo respiram ar poluído. No Brasil, ele é responsável pela morte de 50 mil pessoas a cada ano, por causar doenças como câncer de pulmão, ataque cardíaco e derrame cerebral.
O documento alerta sobre um assunto que jogamos para debaixo do tapete (ou melhor, pela chaminé e pelo carburador): nosso estilo de vida está agredindo o planeta e, ao mesmo tempo, a nós mesmos.
No mundo, a poluição atmosférica e dentro de residências (gerada na queima de lenha ou de querosene) provocou 7 milhões de mortes em 2016 – principalmente, entre moradores de grandes cidades e de países de média e baixa rendas, em especial na Ásia e na África. As populações mais afetadas são crianças de até cinco anos, idosos e pessoas com problemas respiratórios (como asma) ou cardíacos (pressão alta ou insuficiência).
A maioria das 35 cidades brasileiras analisadas pela OMS tem concentração de poluentes acima do recomendado pela entidade (Brasília é a pior capital). Porto Alegre não entrou no levantamento porque, desde 2017, não conta com estações de monitoramento, o que impede o acompanhamento do cenário e, claro, a fiscalização.
– Pelos dados que temos, pode-se dizer que alguns municípios e regiões metropolitanas do Brasil ainda apresentam índices altos de poluição, ultrapassando os níveis de referência da OMS para qualidade do ar em mais de cinco vezes. O Brasil também tem um problema sério com as queimadas, que comprometem a qualidade do ar em áreas urbanas nas regiões Norte, Centro-Oeste e Sudeste – diz Katia de Pinho Campos, coordenadora de Determinantes da Saúde do escritório da OMS no Brasil.
No Brasil, as indústrias eram a principal fonte de poluição até a década de 1980. Mas, na década de 1990, muitas empresas se mudaram para o interior e os veículos passaram a ser a principal fonte de poluentes em conglomerados urbanos.
Dos combustíveis, o diesel, usado em ônibus e caminhões, é o mais agressivo. Na capital paulista, pesquisa do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) publicada em julho apontou que ônibus e caminhões, apesar de representarem apenas 5% da frota veicular da cidade, são responsáveis por 50% dos poluentes. Uma solução simples, sugerem os autores, é instalar bons filtros no escapamento dos ônibus.
– É um problema de saúde pública difícil de resolver. Se invento um jeito de acabar com o mosquito da malária, ganho um prêmio. Se invento um jeito de exterminar os carros, serei extraditado para Plutão. Subsidiamos uma mobilidade ultrapassada. Há interesses econômicos, com um lobby organizado no Congresso e questões culturais. Mas não faz sentido: se você computar os custos de mortalidade precoce e atendimentos hospitalares por poluição, verá que, além de vidas, também perdemos dinheiro – avalia o patologista Paulo Saldiva, professor da USP que fez uma pesquisa cujo resultado apontou que permanecer duas horas no trânsito de São Paulo equivale a fumar um cigarro.
A pesquisadora Simone Miraglia, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), calculou esse prejuízo econômico para 2014 ao analisar o ar de 29 regiões metropolitanas do país. Descobriu que a grande concentração de material particulado, uma poeira fina que sai de pneus e carburadores, considerada a pior poluição presente nas grandes cidades, causou a morte prematura de mais de 20 mil pessoas. O prejuízo aos cofres do Ministério da Saúde foi de US$ 1,7 bilhão – 2% do orçamento da pasta no ano.
Em outro estudo, ao analisar a poluição de São Paulo, ela mostrou que, se a quantidade de poluentes caísse em 25%, a expectativa de vida da população cresceria em cinco meses.
Materiais nocivos que se espalham por todo o corpo
A quantidade de poluição no ar depende do número de fontes emissoras (muitos veículos e indústrias, uso de lenha e gás na cozinha), do relevo e do clima da cidade. Lugares com pouco vento e chuva ou que são circundados por morros tendem a ser mais poluídos. No inverno, a poluição piora, porque o frio dificulta que ela se afaste do solo.
Quem vive em regiões com ar muito sujo pode apresentar sintomas fáceis de notar, como garganta e boca secas, falta de ar e tosse – tentativas do corpo de jogar para fora os intrusos que entram pelo sistema respiratório. Outros sinais são silenciosos: maior risco de infarto, obesidade, prejuízo à memória e até mesmo impacto na fertilidade.
Os chamados materiais particulados são os principais responsáveis por atentar contra nossa saúde. São eles que sujam de cinza as fachadas de edifícios. No organismo, entram pelas narinas até o pulmão e, a partir daí, espalham-se pela corrente sanguínea e o corpo inteiro – chegando, inclusive, ao cérebro.
Na Europa, uma série de países se movimenta para banir o diesel dos veículos. A Noruega quer fazê-lo até 2025, e a França, até 2040. A ambição, no entanto, contrasta com a dificuldade de implantar estações de recarga para carros elétricos ao longo do território. Sem contar que há uma pressão econômica: milhões de empregos dependem diretamente da indústria automotiva.
A China também busca conter a fumaça: em 2014, o governo determinou que as áreas urbanas reduzissem os níveis de poluição em pelo menos 10%. Para isso, proibiu novas termoelétricas, trocou carvão por gás natural nas indústrias e restringiu o número de carros nas ruas. Até agora, vem dando certo. Em Pequim, após a prefeitura investir US$ 120 bilhões no assunto, os índices caíram 35%. Esforços assim são vistos por especialistas como uma forma de melhorar a saúde da população.
– Em 2013, a OMS incluiu a poluição atmosférica na lista de agentes que provocam câncer, assim como o cigarro. No caso do cigarro, a pessoa fuma ou não. Em cidades grandes, não há escapatória. No engarrafamento, a emissão de poluentes do carro aumenta em até 30%. Quem mora na periferia é que mais sofre, porque tem menos acesso à saúde, usa transporte coletivo precário e, por morar longe, fica mais tempo exposto à poluição – alerta Cláudia Ramos Rhoden, coordenadora do Laboratório de Poluição Atmosférica da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Os principais vilões
- Material particulado: mistura de partículas líquidas e sólidas que flutuam no ar, criadas na queima de combustíveis, no atrito do pneu no asfalto e até do cigarro. Entre os agentes nocivos estão silício, titânio, alumínio, ferro, níquel, chumbo e óxidos de enxofre e de nitrogênio. O material particulado está ligado à maior incidência de câncer e problemas respiratórios. É o pior poluente, responsável por envelhecer as células. Está diretamente relacionado a doenças e mortes por problemas cardíacos e pulmonares e à maior vulnerabilidade a infecções por doenças respiratórias.
- Ozônio (O3): é resultado da reação química entre a luz solar e agentes poluentes (como o dióxido de nitrogênio) e compostos orgânicos voláteis (como hidrocarbonetos, derivados da queima de combustíveis). Normalmente, aumenta na hora do rush das cidades grandes e atinge o ápice à tarde. Irrita o sistema respiratório (tosse, dor de garganta, dor no peito ao inspirar profundamente), agrava a asma, diminui o fôlego, agride as células dos pulmões e reduz as suas defesas, inflama pulmões e brônquios, o que os deixa mais vulneráveis a infecções.
- Dióxido de nitrogênio (NO2): é expelido na combustão dos motores de carros, barcos e centrais elétricas. Motores a diesel emitem uma quantidade ainda maior. É um grande responsável por asma e problemas respiratórios em crianças.
- Dióxido de enxofre (SO2): nasce da queima de combustíveis fósseis, como carvão e petróleo, em veículos e termoelétricas. Em contato com o oxigênio, ele se transforma em ácido sulfúrico (H2SO4), que irrita as vias respiratórias.
- Monóxido de carbono (CO): ao ar livre, é expelido por automóveis. Em ambientes internos, aparece no uso de aquecedores a óleo, churrasqueiras e fogão a gás e cigarro. Em grandes quantidades, o CO diminui a capacidade do sangue de transportar oxigênio.
Os efeitos da poluição no corpo
Doenças respiratórias
As vias aéreas são o hall de entrada da poluição, portanto os pulmões são os órgãos mais vulneráveis. Os gases e o material particulado que inalamos chegam aos brônquios e, em seguida, caem na corrente sanguínea. A partir daí, espalham-se pelo corpo todo. Quem vive em zonas de grande poluição costuma ter mais crises asmáticas e redução do desempenho pulmonar. Os bebês estão entre os mais vulneráveis, pois é logo após o nascimento que são formados 80% dos alvéolos, onde ocorrem as trocas gasosas – assim, alterações no pulmão podem prejudicar a expectativa de vida. Metade dos casos de pneumonia em crianças é causada pela poluição. Entre os adultos, o câncer de pulmão é outra consequência, porque o material particulado afeta a membrana das células, um gatilho para alterar o DNA de células.
Cérebro
Estudos apontam que o material particulado prejudica as conexões entre os neurônios, o que poderia estar relacionado a problemas de memória, aprendizagem e Parkinson. A poluição aumenta a presença de compostos de ferro no cérebro, um marcador muito comum em quem tem Alzheimer. Também já foi notado que a poluição gera estresse oxidativo (envelhece os neurônios) e que crianças gestadas e crescidas em áreas de grande fluxo de carros têm pior memória e aprendizagem do que aquelas que cresceram em locais menos poluídos.
Coração
O sistema cardiovascular é uma grande vítima: a poluição e, em especial, o monóxido de carbono, impede que os glóbulos vermelhos transportem oxigênio, o alimento das células do corpo – em última instância, isso causa a morte celular. Para coroar, os gases da poluição aumentam a produção de radicais livres, que geram inflamação nos vasos sanguíneos, impedindo a produção de óxido nítrico, um vasodilatador. Os vasos ficam mais estreitos, o que aumenta o risco para pressão alta, entupimento de artérias e aterosclerose. Há estudos verificando que quem vive em regiões poluídas têm pressão mais alta, o que, a longo prazo, pode contribuir para arritmia, derrames e infartos. A poluição também aumenta a capacidade do sangue de coagular. Assim, ele torna-se mais viscoso, o que sobrecarrega o coração e aumenta o risco para entupimento de artérias e a formação de trombos, causa de acidente vascular cerebral (AVC).
Aumento de peso
A ciência vê indícios de que a poluição desequilibra o sistema endócrino, principal responsável pela produção hormonal. Com a alteração no metabolismo, o apetite e o funcionamento da queima calórica ficam desregulados.
Sistema reprodutor
Paulo Saldiva, da USP, conduziu um estudo cuja conclusão aponta que, em bairros de São Paulo com maior tráfego de carros, é maior o índice de nascimento de meninas, em vez de meninos. Também há evidências de que a qualidade dos espermatozoides é prejudicada e que a ejaculação diminui. Tudo está relacionado ao desequilíbrio na produção de hormônios, em especial na progesterona (feminino) e na testosterona (mais produzido em homens). Ainda há maiores riscos de aborto e de o bebê nascer prematuro e com baixo peso.
Saídas dependem de políticas públicas
Há soluções para conter os efeitos da atividade humana na atmosfera. Individualmente, você colabora ao deixar o carro na garagem em prol do ônibus e da bicicleta, checar se o filtro de ar do seu veículo está funcionando bem, usar fogões e combustíveis limpos, reduzir o lixo doméstico e reciclá-lo. Na hora do esporte, evite correr em ruas com grande fluxo de veículos.
– Durante o exercício, o volume de ar que entra no pulmão é bem maior, então mais poluição é inalada – destaca Marcelo Gazzana, chefe do serviço de pneumologia e cirurgia torácica do Hospital Moinhos de Vento.
Mas a saída de maior relevância depende de políticas públicas, algo em que vamos muito mal no comparativo com outros países. Enquanto lá fora o incentivo é para melhorar transporte público e ciclovias, por aqui o assunto ainda mobiliza pouco. Porto Alegre sepultou a ideia de metrô no ano passado, e o BRT, sistema de ônibus rápido, ficou para trás.
– É preciso que as evidências sobre os riscos e efeitos na saúde já reconhecidos estejam na pauta das demais políticas públicas, como as de meio ambiente, mobilidade urbana, transportes, indústria e comércio ou de agricultura. Isso deve ser feito por meio de legislações que estabeleçam os níveis permitidos, que tenham bons sistemas de monitoramento e vigilância e que desenvolvam ações locais para redução das fontes de poluição, como a melhoria do transporte público, a qualidade dos combustíveis e dos motores dos carros, a fiscalização das fontes fixas e das queimadas – diz Katia de Pinho Campos, da OMS no Brasil.
A fiscalização brasileira, em específico, é um problema básico: acompanhamos muito mal a poluição do ar, o que dificulta a elaboração de políticas adequadas – como investir em mudanças sem ter real dimensão do problema?
É o caso de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. Por falta de verba, a Capital não faz ideia de como está a qualidade do ar desde o ano passado. A Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Porto Alegre (Smam) informou que não tem previsão de voltar a ter estações de monitoramento.
Para piorar, desde 2014, a prefeitura não multa motoristas que conduzam veículos que poluam demais. A justificativa da Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) é de que o Conselho Nacional de Trânsito (Contran) baixou uma resolução que impõe maiores exigências nas blitze, o que dificulta a fiscalização.
– Tentamos mudar junto ao Contran, mas não conseguimos. Agora, fazemos abordagens em caráter educacional. Orientamos a pessoa, mas sem aplicar multa – explica Fabio Berwanger Juliano, diretor de operações da EPTC.
A nível estadual, a Secretaria de Meio Ambiente (Sema) afirma que o ar no Rio Grande do Sul está dentro do padrão, conforme suas medições. No entanto, das 13 estações de acompanhamento de qualidade de ar do Estado, só sete funcionam – nenhuma em Porto Alegre.
– Nas estações que medimos, a média anual é de que o ar é de bom a regular. Está dentro dos padrões definidos pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Mas sete estações para atender a todo o Estado é pouco. É uma realidade que temos. Colocar cada estação em funcionamento exigiria cerca de R$ 1 milhão – diz Márcio Vargas, chefe da divisão de monitoramento ambiental da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam).
No entanto, os próprios padrões de poluição definidos pelo governo federal são postos em xeque por especialistas. Por aqui, o limite anual (50 µg/m3) é mais do que o dobro do estipulado pela OMS (20 µg/m3). E a regra é defasada: foi definida em 1990 e não inclui a contagem de partículas mais finas de poluentes, algo medido em entidades internacionais.
– Esse ar bom é falso. É como se por algum decreto o Ministério da Saúde aumentasse o limite da pressão arterial, apesar do recomendado lá fora. A comunicação feita no Brasil é desprovida de bases científicas – afirma Vargas.
Cláudia Ramos Rhoden, da UFCSPA, já conduziu várias análises na Capital e descobriu, por exemplo, que o bairro Humaitá tem altos níveis de poluição – a hipótese é de que a região é porta de entrada para a cidade e, por conta da malha rodoviária, tem grande fluxo de veículos. Por outro lado, regiões como a Hípica, longe do trânsito, têm o ar mais limpo.
– No inverno passado, a UFCSPA fez a medição de poluição por material particulado próximo ao Túnel da Conceição. O nível deu mais do que o dobro do recomendado pela OMS. Em muitos lugares, as pessoas consultam o nível de poluição para saber se podem correr na rua. Não há política pública interessada nisso por aqui. E o cidadão tem direito a saber o ar que respira – diz Cláudia.