Ao longo de 21 anos, a sala de troféus da escola de futsal da Associação de Moradores da Vila Elizabeth, no bairro Sarandi, exibiu com orgulho apenas marcas de glórias. Além de taças e medalhas de competições, estão por lá fotos de nomes revelados pela escolinha e que depois ganharam o mundo jogando na dupla Gre-Nal e em outros grandes clubes, como Matheus Biteco (falecido no acidente da Chapecoense), Guilherme Biteco, Eduardo Sasha e Yuri Mamute.
Desde maio, porém, a sala passou a exibir, também, marcas das dores deixadas pela enchente em Porto Alegre.
O Sarandi foi, em números absolutos, o bairro mais atingido pela tragédia climática. Foram 26.042 pessoas e 8.172 edificações afetadas, conforme o painel "Impactos das cheias de maio de 2024", mantido pela prefeitura.
Seis meses depois, as cicatrizes da enchente na Capital ainda são visíveis de diversas formas, de marcas nas paredes à fuga de moradores.
— Está sendo um período muito triste para o bairro e para a escolinha. Perdemos em torno de 60% dos alunos. Nós estávamos com 110, 115 alunos, e hoje a nossa estimativa é de 50. Houve uma perda muito grande porque as famílias se mudaram, foram para outros locais da Grande Porto Alegre —explica Jarcedi de Araújo, um dos líderes da Associação de Moradores da Vila Elizabeth e Parque (Amvep) e responsável pela escola de futsal.
O local atende crianças e adolescentes entre cinco e 15 anos, parte em situação de vulnerabilidade social.
O filho da técnica em telecomunicações Fernanda da Silveira Warnke é um dos atletas mirins. A família foi obrigada a fugir da enchente em 3 de maio com expectativa de retornar no dia seguinte. Porém, seis meses depois, a casa própria segue fechada em razão dos danos.
Com dificuldades financeiras e de encontrar mão de obra, o ritmo dos consertos é lento. A família mora, atualmente, em um apartamento emprestado em Cachoeirinha e, antes, viveu um período em Águas Claras.
Apesar das mudanças de endereços, o filho Miguel, nove anos, continuou treinando na escolinha do Sarandi.
— Essa mudança foi bem conturbada. No início, ele também estava sem aulas, porque a escola dele foi atingida. Em agosto, voltou o colégio. A gente pensa em retornar (ao Sarandi) porque a gente não tem outro imóvel, mas eu tenho muito medo de comprar móveis e acabar perdendo tudo de novo —conta Fernanda.
Na associação comunitária do bairro, o prejuízo foi estimado em R$ 350 mil, entre danos na quadra, redes de proteção, mobiliário e pintura. Além da escolinha de futsal, Jarcedi de Araújo também tem uma empresa de turismo.
Sem saber se conseguirá manter os dois negócios, evitou buscar empréstimos em instituições financeiras.
— Fica difícil entrar em uma linha de financiamento porque nós não temos uma noção futura. Não vou me comprometer porque está incerta essa parte do turismo e da minha escolinha também. Meus alunos ainda não retornaram — diz o empresário.
A cada chuva que dá, a insegurança aumenta
JARCEDI DE ARAÚJO
da Associação de Moradores da Vila Elizabeth e Parque
Seis meses depois da enchente, a incerteza sobre uma nova tragédia é um sentimento comum entre os moradores e empresários dos bairros mais afetados. Além do Sarandi, aparecem como os mais atingidos Menino Deus (18.231 pessoas), Vila Farrapos (17.522) e Humaitá (12.617).
Empresa enfrentou enchentes de 1941 e 2024
Com 87 anos de história em Porto Alegre, a indústria de embalagens da família do empresário Albert Feser vivenciou as duas maiores enchentes da história da cidade. Feser cresceu ouvindo os relatos da avó e do pai sobre a cheia de 1941, que atingiu o pavilhão industrial no antigo endereço, na Rua Ernesto Alves.
A empresa conseguiu se reerguer. Cresceu, se mudou para a Avenida A.J. Renner e viveu, de novo, a tragédia de uma enchente.
— Eu tinha na memória muito viva o desastre, foi um terror. Minha avó muito falou da enchente de 1941 e escutei minha vida inteira — lembra Feser, membro da quarta geração da família e hoje o responsável pela Hegapack Embalagens.
Entre perdas de equipamentos como impressoras, guilhotina, máquina de corte, móveis e computadores, o empresário contabiliza prejuízo de R$ 1,4 milhão.
A despeito de diversas promessas de ajuda por meio de recursos, Feser se queixa da burocracia e da desatenção do governo federal e dos congressistas gaúchos em relação às medidas provisórias envolvendo socorro financeiro. Inscritos desde junho para recebimento do auxílio no pagamento de dois salários mínimos aos trabalhadores, os 32 funcionários da empresa seguem na expectativa.
— Apareceu no portal do Ministério do Trabalho que estava agendado (o pagamento) para o dia 17 (de outubro). No dia 15 ou 16, fizemos reunião com os colaboradores e explicamos o que seria aquilo, que iria entrar R$ 2.824. Chegou dia 17 e não entrou. E aí? — questiona Feser.
A nova promessa é de que os dois salários sejam creditados em 13 de novembro. Porém, o empresário é cético após promessas anteriores. Ele também critica o fato de a medida provisória referente à ajuda ter expirado sem a análise do Congresso. No final de outubro, Feser mandou e-mail aos 31 deputados federais cobrando explicações.
— Acham que está tudo resolvido aqui no Rio Grande do Sul. Parece que não tem ninguém acompanhando — afirma.
Queda de clientela no Menino Deus
Além dos prejuízos diretos decorrentes do aguaceiro, estabelecimentos comerciais ainda lutam, seis meses após a enchente, para recuperar a clientela. Na Rua Botafogo, próximo à Avenida Praia de Belas, no Menino Deus, placas de venda e aluguel chamam a atenção.
Proprietária de uma padaria na vizinhança, Simone Nunes atesta:
— Bastante gente foi embora. A gente notou no movimento. Caiu uns 30% ou 40% — afirma a dona da Padaria Requinte.
O estabelecimento tem 29 anos e conta com ponto próprio. Apesar do receio de uma nova enchente, a mudança de endereço ainda não está no planos.
— Mas se chegar alguém e oferecer o que a gente quer, a gente até vende — afirma Simone.