Priscila Rocha, 41 anos, e Marcos Leandro Viland, 47, deixaram Eldorado do Sul na tarde do dia 6 de maio. A bordo de um rebocador do Exército, junto aos filhos Marcos Leandro, de 14 anos, e Maya, de 6, eles percorreram as ruas tomadas pela água sem conseguir identificar o que era cidade e o que era Rio Jacuí. Um misto de alívio e desespero acompanhou o deslocamento até a Usina do Gasômetro, na Capital, porto seguro onde a operação de resgates se concentrava. O percurso foi registrado pelo repórter fotográfico Mateus Bruxel.
Um mês depois, a reportagem de Zero Hora voltou a Eldorado do Sul e reencontrou a família já em casa, mas ainda colando os pedaços do que foi quebrado pela enchente.
— Foi o pior mês da minha vida. Passamos fome, passamos sede, fiquei com meus filhos pingando na casa dos outros. Voltei para a minha e não tinha nada — desabafou Priscila, em meio às lágrimas. — Mas vai passar. A gente vai limpar, vai organizar, e vai ficar com cara de casa de novo.
Os quatro deixaram a residência na manhã de 2 de maio, quando a água começou a subir no bairro Chácara, um dos primeiros a ser tocado pelo Jacuí. Foram para a casa da mãe de Marcos Leandro, em uma zona mais alta da cidade, mas, à noite, foi preciso evacuar também aquela área. Dali, migraram para a residência de outra familiar, onde ficaram ilhados até o resgate no dia 6.
Já em Porto Alegre, o destino foi a casa do pai de Priscila, no bairro Santo Antônio. A estadia durou cerca de uma semana, quando, então, a família decidiu se hospedar em Guaíba, no irmão de Marcos Leandro, a fim de ficarem mais próximos de Eldorado do Sul, na esperança de que a água não tardasse a recuar. Contudo, o retorno para casa só ocorreu no último sábado (1º).
Desde então, a família vem tentando recomeçar. De novo, pois, em novembro, a água já havia encontrado a residência e causado prejuízos. Desta vez, porém, os estragos foram bem mais expressivos. Priscila e Marcos Leandro ainda não conseguiram limpar as marcas da lama que chegou a tocar o teto, pois quase não há água saindo nas torneiras. Uma montanha de lixo também se acumula em frente à casa. São móveis, objetos, roupas e eletrodomésticos retirados do espaço que, um dia, foi a realização de um sonho para eles.
— A nossa casa está pronta há 19 anos, cada tijolinho foi pensado pela gente. Agora, virou tudo uma zona de guerra, tu não sabe o que é o quê. Eu entro e não reconheço o lugar. A minha cozinha era toda colonial, combinava com a mesa. A água quebrou tudo, literalmente. Botava a mão e caía os pedaços inteiros. Tinha 18 anos aquela cozinha, era a minha menina dos olhos. Eu escolhi a dedo, do jeitinho que eu queria — lamentou Priscila, mostrando as paredes ornadas, agora, apenas pelas marcas do barro.
A cozinha era o ambiente preferido da casa. Espaçosa, com churrasqueira e fogão à lenha feito de tijolos, era ali que todas as reuniões de família eram realizadas. Nos últimos 30 dias, o cômodo deveria ter sediado algumas delas: além do Dia das Mães, em maio, a família celebra três aniversários. O mês que costumava ser de festa foi arrasado pela água da enchente, mas encontrar itens que sobreviveram à inundação desperta na família a certeza de que, logo, tudo voltará a ser como era antes.
Durante a visita da reportagem, Priscila e Marcos Leandro descobriram álbuns com fotos que poderiam ser salvas. Foi como um sopro de esperança para o casal, que folheou as fotografias e relembrou, com emoção, os momentos registrados nelas.
O que eu quero é trabalhar e ajudar a minha cidade a se reerguer. Tudo o que eu puder comprar aqui, eu vou comprar aqui
MARCOS LEANDRO
Morador de Eldorado do Sul
— Não está tudo perdido, é só garimpar que a gente acha — constatou Priscila. — É bom encontrar alguma coisa que faz sentido para nós. É a história da gente. Sempre gostamos de bater foto de tudo.
— Teremos que voltar a sorrir, não adianta. Vamos voltar — disse Marcos Leandro, mirando o registro de um momento feliz em família.
Nascido no território de Eldorado do Sul, que se emancipou de Guaíba em 1988, o supervisor de operações receia que a cidade continue sofrendo após a enchente. Marcos Leandro, que fala com entusiasmo sobre como costumava ser boa a vida no município, lamenta que muitas pessoas já estejam se mudando dali. Teme, ainda, que empresas empregadoras também resolvam abandonar Eldorado, trazendo ainda mais perdas à população, e que os comércios que resistirem acabem quebrando.
— O que eu quero é trabalhar e ajudar a minha cidade a se reerguer. Tudo o que eu puder comprar aqui, eu vou comprar aqui. Fui comprar tinta e estava embarrada, mas comprei com barro mesmo. Tem que ser assim, porque temos ter que fazer a roda girar. A cidade é muito pequena e, se não fizermos isso, ela vai afundar.
Enquanto não é possível voltar a habitar a casa, a família está vivendo em um kitnet que também é de propriedade deles, em um prédio com peças que alugam a terceiros construído em frente à residência. Marco e Priscila dizem que, agora, suas únicas revindicações às autoridades são por agilidade no retorno da água e a retirada do lixo das ruas. Querem conseguir limpar a casa o quanto antes para, aos poucos, retomar a vida.
"Acredito na reconstrução sempre"
O cenário já é mais próximo da normalidade na casa de Cassiano Chaves, 41 anos, e Carina Chaves, 35, moradores do bairro Medianeira, onde a limpeza está mais adiantada. De mãos dadas com a filha mais nova, Rhadassa, de 10 anos, o casal foi retirado de Eldorado do Sul pela rebocadora do Exército também na tarde de 6 de maio. Eles dividiram a embarcação com Priscila e Marcos Leandro. A reportagem de Zero Hora também reencontrou a família um mês depois.
Chegando em Porto Alegre, após o resgate, Cassiano e Carina se juntaram aos filhos mais velhos, Abner, 16 anos, e Lindsey, 15, que estavam com o irmão de Carina e haviam sido resgatados no dia anterior. Na Capital, a família foi acolhida pela sogra da irmã da cunhada de Carina, mobilizando diferentes níveis da escala familiar. Durante a hospedagem, chegaram a voltar para Eldorado algumas vezes, na tentativa de adiantar a limpeza, pois a água já havia baixado. O retorno definitivo para casa ocorreu na semana passada.
Muita coisa se perdeu e está acumulada na rua, mas houve o que pudesse ser salvo. Um sofá novo foi conquistado por doação, enquanto geladeira, máquina de lavar, micro-ondas e forno foram limpos e voltaram a funcionar, enchendo a família de esperança.
— Eu engasguei quando vi tudo funcionando de novo, depois de tudo o que a gente passou. Agora é só o externo, o que ficou ali no pátio. Tava bem bonitinho, organizadinho, e parece que tinha passado um tornado. Mas nós vamos recuperar — disse Cassiano.
Eu acredito na reconstrução sempre, sabe? Deus sempre esteve com a gente. Ele sempre está cuidando
CARINA CHAVES
moradora de Eldorado do Sul
O casal trabalha na mesma empresa, uma beneficiadora de arroz. Cassiano é controlador de qualidade, enquanto Carina é auxiliar de limpeza e empreende fazendo bolos e doces para vender. Os dois voltaram ao trabalho formal nesta semana, ajudando a limpar a firma. Já o empreendimento da confeitaria deve demorar para ser retomado. Formas e outros utensílios usados na produção dos quitutes e conquistados por ela com suor ainda estão dispostos no pátio da residência, sujos de barro, mas Carina não se deixa abater:
— Deixei para mexer nas coisas da confeitaria por último, porque sabia que, aí, eu iria travar. Perdi muita coisa, mas sei que vou reconquistar. Eu acredito na reconstrução sempre, sabe? Deus sempre esteve com a gente. Ele sempre está cuidando.
Símbolo disso é a palmeira comprada por ela para decorar novamente a casa. A planta estava à venda na floricultura de uma amiga de Carina, Adriana, que está enfrentando um câncer e também foi atingida pela enchente em Eldorado do Sul. Ao passar pelo estabelecimento e ver que a palmeira sobreviveu à enchente, Carina ficou emocionada e mandou uma foto à amiga, que ainda não havia retornado. Disse a ela que queria comprar a planta, como uma espécie de amuleto de recomeço para as duas.
— Olhei aquela palmeira e era a coisa mais linda, bem viva. Eu pensei: "Vou levar essa vida para a minha casa. Vou comprar de novo as flores que eu tinha na janela e vou dar a volta por cima".