Desde o dia 1º de maio, o asfalto virou casa para a família de Loreci Leal Santiago, a Lori, 55 anos. Do antigo lar, só restaram as lembranças, porque o resto o Guaíba levou. A bordo de uma Kombi lotada, ela, o marido, duas irmãs, uma nora e uma neta de seis anos saíram da casinha onde moravam, na Vila Pinheiro, e se instalaram às margens da BR-290, em Eldorado do Sul.
— A gente está aqui esquecido. Não veio uma autoridade para falar com a gente. A barraca enche de água quando chove e perdemos todas as roupas que ganhamos — conta Lori.
Mesmo com os seis parafusos que tem no joelho, Loreci encontrou forças para sair de casa com água pelo pescoço. Uma das filhas bebeu água da enchente quando tentava se salvar. Antes de encontrar o ponto em que se instalaram na lateral da rodovia, a família buscou abrigo em outros trechos da estrada. Depois do perigo que os automóveis e caminhões representam, a maior preocupação da dona de casa é com o seu neto de sete anos, que está abrigado com a mãe na loja em que ela trabalha.
— O nome dele é Arthur Miguel. Ele é deficiente auditivo e perdeu o carregador quando saiu de casa. Agora, como está tudo parado, não tem como conseguir outro pelo Estado. Ele fica muito nervoso porque, agora, além de não falar ele também não consegue ouvir — lamenta a avó.
Na tenda ao lado, a família de Cleni Terezinha Pires, 58, divide o mesmo drama. A nora Ritieli Pereira, 24, vive no abrigo com as pequenas Maria Pires, 1 ano e Isabele Cristina Pires, 3 anos, e com o esposo Thiago Pires da Cruz, 37. Eles se viram com as roupas e alimentos que recebem de doação, mas quando chove, parte dos suprimentos acabam molhando e se perdendo. Na entrada da cabana, um desenho feito por Isabele embeleza a porta improvisada com um pedaço de tecido.
O cordão de moradias atravessa o acostamento da rodovia escancarando o abandono de quem está há um mês vivendo à margem da sociedade. São carros com lonas, estruturas de madeira improvisadas com coberturas precárias que não protegem do frio, nem tampouco da chuva.
Solidariedade e desamparo
Alguns quilômetros à frente, na Ilha das Flores, um outro acampamento desponta no horizonte. Nele, Andria Mazui, 43, atua como voluntária. No local, um grupo de voluntários se organizou para coletar as doações de alimentos e roupas. Na tenda principal, onde durante a noite dormem cerca de 30 pessoas, Andria ajuda na triagem das doações recebidas. A casa dela não foi atingida, mas todos os dias ela volta para ajudar quem precisa. O ponto de acolhimento foi ideia de Sandra Ludwig, 54, que perdeu tudo para a enchente e desde então está morando ali.
— É difícil. Outro dia deu uma chuva forte. Era 3h da manhã e estávamos todos correndo embaixo do barracão, tentando recolher os colchões. É horrível — conta Sandra.
Banho no acampamento, só de balde. Iluminação, só com velas ou lanternas. Banheiros químicos foram instalados recentemente por voluntários. O som dos caminhões incomoda e inviabiliza aos desabrigado uma noite plena de sono.
A todo momento, carros estacionam no acostamento e descarregam doações. Segundo Andria, os órgãos públicos só apareceram no local para dizer às famílias que não poderiam mais morar nas áreas de alagamento, mas a ajuda vem da sociedade civil.
Amor pelos animais
Seguindo pela 290, no sentido interior-Capital, a cena se repete em alguns trechos. Na região da Ilha dos Marinheiros, um afunilamento da rodovia deveria impedir que os veículos acessassem a área onde as famílias estão acampadas. Mas o limite não é respeitado, colocando as vidas das pessoas e dos animais em risco.
Nesse local, inclusive, uma cena pitoresca chama a atenção dos motoristas. Uma fileira de cabritos, alguns deles com roupas de inverno para cachorro, pastam tranquilamente no acostamento. O tutor dos animais é Milton Lemos do Nascimento, 58, o Maneca.
Ele conta que arriscou a vida para salvar seus animais. Ele morava em uma propriedade na Ilha dos Marinheiros que foi completamente alagada. De barco, salvou os cabritos, porcos, galinhas e cães. Os novilhos atravessaram a correnteza andando. A esposa e a filha foram levadas para uma localidade segura, enquanto ele se ocupava dos resgates dos animais.
Alguns dos cães que resgatou, ele precisou doar por não poder oferecer o conforto que tinham em casa. Os animais que ele resgatou hoje são alimentados com doações. Maneca se emociona e chora ao falar dos coelhos e calopsitas que não conseguiu salvar das águas.
— Quando eu mais precisei na minha vida, os meus animais estavam comigo, por isso que eu nunca os deixo para trás. Eles não sabem pedir socorro e muita gente não quis me ajudar — lamenta.