A palavra recomeço define com precisão o Centro Histórico de Porto Alegre. Cerca de 40 dias após a enchente inundar estabelecimentos comerciais, restaurantes, bares, livrarias e bancas de revistas, o cenário ainda está distante do considerado ideal. Na Rua dos Andradas, uma imensa bandeira do Rio Grande do Sul pode ser vista no mezanino do complexo gastronômico e cultural UP Food Art, em atividade há apenas sete meses no ponto.
— Somos gaúchos praticantes. Colocamos a bandeira para inspirar a vizinhança. Ela lembra quem somos e nossa capacidade de recomeçar — explica Émerson Maicá, 40 anos, um dos sócios-proprietários do espaço de lazer.
O trecho da Rua dos Andradas da Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ) em direção à Praça da Alfândega foi um dos mais atingidos pela cheia do Guaíba. Os dias foram de apreensão e teve gente que sequer conseguiu dormir enquanto a água subia dentro de seus estabelecimentos. Foram momentos difíceis e de incerteza. Agora, a retomada acontece de forma lenta.
Somos gaúchos praticantes. Colocamos a bandeira para inspirar a vizinhança. Ela lembra quem somos e nossa capacidade de recomeçar
ÉMERSON MAICÁ
Sócio do UP Food Art
O proprietário da Padaria e Confeitaria Roma, Maikon Daltoe, 37, perdeu o sono naquelas dias quando barcos passavam em torno do Mercado Público, do Laçador e de tantos símbolos em diferentes bairros da Capital. Ele fechou o estabelecimento no dia 3 de maio. E como contenção empilhou sacos de areia na porta, mas a água entrou. Chegou aos 80 centímetros lá dentro e estragou os móveis em madeira. Foram 21 dias sem poder reabrir, mas agora já há clientes tomando café ou comendo doces no lugar.
— Teremos de reconstruir uma loja nova. Desde a parte elétrica, que é subterrânea, até maquinário. O tempo que vamos ficar parados para reformar, e o fator econômico, porque o movimento ainda está bem abaixo do que era antes — enumera Daltoe, estimando os prejuízos em R$ 600 mil.
O dono do Grelhados Soledade, Ildo Lando, 70, não esperava que a cheia de maio superasse a histórica de 1941. Apesar da surpresa, o empreendedor relata que teve tempo hábil para tirar as mercadorias e não sofreu perdas maiores. Questionado como proceder em uma situação tão impactante, ele menciona a importância da negociação com os fornecedores.
— Tem que ter muita calma no momento. É o passo a passo. Vai negociando — diz, enquanto ajeita as mesas e cadeiras na calçada em frente ao restaurante.
No quarteirão seguinte, a água entrou 80cm dentro do Grelhados Veneza. O proprietário Romulo Zanon, 39, ainda tem bem viva na memória a catástrofe. Os refrigeradores de parceiros comerciais foram substituídos pelas próprias empresas, enquanto os dele foram consertados. Ele ainda compara a situação com o período da pandemia e acredita que a inundação foi pior, pois não pôde trabalhar no regime de telentrega ou no esquema de retirada no balcão.
— A enchente não era esperada. A gente estava vendo a água, mas não acreditava que ela subiria. Perdemos muito estoque, além dos dias parados e do movimento que não retornou ainda. Os prejuízos são imensos — lamenta, dizendo que jogar comida fora estragada foi a pior parte do processo.
Alguns estabelecimentos estão atendendo em outros endereços após as perdas. É o caso do Sebo Só Ler, situado ao lado da Catedral Anglicana da Santíssima Trindade, que perdeu inúmeros exemplares de livros e revistas. Na Praça da Alfândega, o Rua da Praia Shopping ainda está com as lojas interditadas e sem acesso para o público. A Casa Maria também exibe cartaz com os dizeres: "em breve voltaremos".
O artesão Jango Duarte, 72, vende suas peças em uma banquinha no calçadão da praça há 13 anos. Ficou mais de um mês sem poder trabalhar e perdeu mercadorias. Estima o prejuízo em R$ 2 mil.
— Foi complicado, não tem de onde tirar dinheiro. Quem trabalha com couro, se a água pegou, já era — menciona, referindo-se aos demais ambulantes que trabalham com casacos, chapéus, luvas e cintos em outro trecho da praça.
Na Encanto Home Pet, as portas foram abertas na semana passada. A loja ficou 30 dias fechada em função da inundação, que chegou aos 40cm na parte interna. Os danos maiores ocorreram nos móveis e nas mercadorias que estavam no piso.
— Em hipótese alguma imaginamos que a enchente seria assim. Não teve alarme ou aviso da prefeitura e do governo — comenta o proprietário Alexandre Scotta, 47.
A própria Praça da Alfândega ainda exibe a marca d'água em monumentos e nos prédios culturais, como o Farol Santander, o antigo Correios e Telégrafos e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs). Alguns bancos estão danificados e os jardins destruídos. A cor marrom do lodo seco predomina.
Na esquina da Rua General Câmara (Ladeira) com a Andradas, a Banca Esfera já funciona normalmente. Mesmo estando acima dos degraus e no começo do aclive da lomba, a água entrou 40cm lá dentro. O proprietário Ricardo Maciel, 57, não chegou a ter perdas materiais, pois foi avisado a tempo por uma cliente quando a inundação se elevava no espaço. Assim, correu para levantar as publicações que comercializa como revistas e jornais. Porém, foram mais de três semanas sem poder abrir e trabalhar.
— Foi uma sensação de incredulidade. Quando cheguei, me apavorei — recorda Maciel, pegando a trena para mostrar o ponto exato onde a água chegou dentro da banca.