Porto Alegre está ferida no orgulho, na alma e no brilho. O 3 de maio de 2024 entra para a história como o dia em que parte da cidade, incluindo regiões populosas e icônicas, foi engolida pelo Guaíba, que passou de cartão-postal a ameaça. O sistema de proteção de enchentes foi dobrado pela fúria da natureza, que despeja intensa chuva sobre o Rio Grande do Sul desde a última semana de abril.
O prefeito Sebastião Melo orientou moradores e comerciantes das regiões mais afetadas, como Centro Histórico e Quarto Distrito, a deixarem os locais, enquanto hidrólogos sugeriram um plano de evacuação para o caso de o Muro da Mauá não resistir à pressão.
Próximo do meio-dia de sexta-feira, o portão 14 do sistema de contenção de cheias, defronte à antiga ponte do Guaíba, rompeu parcialmente. A estrutura é de grande porte, com largura de cerca de um palmo, e apresenta pigmentos de ferrugem. A comporta é fechada em situações de alta para brecar o fluxo, mas acabou severamente vergada. O Guaíba rugiu por entre os largos vãos. Com bruta correnteza, cruzou por debaixo da Avenida Castelo Branco e, do outro lado, alcançou a Avenida Voluntários da Pátria. Dali, correu para a Zona Norte.
Dilúvio
Inóspita, como se recortada de um filme de cataclismo, era a cena na Avenida Sertório.
Do trecho entre a antiga ponte do Guaíba até a Avenida Farrapos, a Sertório, um corredor de veículos, estava completamente alagada. Havia ondas na via e, nos pontos mais críticos, a água batia na cintura.
Do meio do aguaceiro saiu Antônio Xavier, 31 anos, trazendo um cachorro no colo. Ele reside na região das Ilhas, mas viu a casa ser invadida pela manhã. Junto de três familiares e oito cães, tomou carona de barco com um amigo até a ponte do Guaíba. Dali, seguiu a pé e atravessou o dilúvio da Sertório. Ele tinha outros oito cães, mas não havia como carregar todos. Teve de tomar a dilacerante decisão de deixá-los sobre o telhado da casa.
– Já peguei tudo quanto foi enchente, mas essa foi a maior que vi na vida. Hoje pensei que não sairia vivo – contou Xavier.
No meio da tarde, a água já beliscava a Avenida Farrapos, onde fiscais de trânsito tentavam controlar o caos. Havia congestionamento, infrações, pessoas nervosas e com olhar atônito.
A incredulidade era justificável. Algo parecido havia acontecido lá em 1941, quando o nível do Guaíba, antes da construção do sistema de contenção, alcançou 4m76cm.
Neste 3 de maio, a marcação apontou às 21h, a 4m77cm, com chance de novas subidas. Já é a maior enchente da história de Porto Alegre.
Retirantes
Ainda na Farrapos, retirantes estavam por toda parte, carregando mochilas e aparelhos de TV. Na Avenida Castelo Branco, com trânsito próximo de zero, jovens observavam o espetáculo dantesco. Um deles gritava:
– Porto Alegre já era.
A rodoviária foi invadida pela manhã e as operações acabaram reduzidas a 5%. O Aeroporto Internacional Salgado Filho foi fechado temporariamente à noite.
No Centro Histórico, o Mercado Público, o Paço Municipal e a Praça Montevidéu estavam cercados. A água, ali, vertia pelos bueiros. O sistema pluvial não deu conta e tudo voltou a superfície, expulsando do subsolo baratas que maculavam as paredes do Mercado Público.
Havia muita gente nas ruas fotografando e filmando a surpreendente tragédia. Na Praça da Alfândega, onde acontece anualmente a tradicional Feira do Livro, o Guaíba avançou até a metade. O governador Eduardo Leite surgiu por ali no meio da tarde e conversou com populares. Na verdade, fez apelos. Afirmou entender a curiosidade pelo fato histórico, mas pediu que todos se afastassem porque o Muro da Mauá estava sendo testado como nunca antes. Não era seguro ficar ali, alertou. Eventual rompimento poderia levar uma onda perigosa em direção à Alfândega.
Não surtiu o efeito esperado. Minutos depois, uma senhora posou para uma foto sorridente no mesmo ponto, erguendo os dois polegares em sinal de positivo, tendo um ilhado Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs) como pano de fundo.
Orla
Os alagamentos tomaram a orla do Guaíba e o Centro de Treinamento do Inter. Na Avenida Diário de Notícias, encobriram os campos da escolinha de futebol do Grêmio e, mais adiante, os clubes náuticos. Na Praia de Ipanema, lambaris minúsculos chegaram a ser lançados pela água sobre o calçadão. A água redefiniu a Orla, ultrapassou a ciclovia e, em alguns trechos, tomou pátios das residências do bairro de classe média-alta da Zona Sul.
– A natureza está desequilibrada. Tudo está desorientado – refletiu o produtor rural Paulo Maciel, 53 anos.
O aposentado Vitor Bassani, 72 anos, tem o hábito de ir diariamente ao Centro. Ele discorda do brado “Porto Alegre já era”. Idealiza um ponto de virada.
– Quem sabe isso leve as pessoas a valorizarem mais a cidade, a natureza, os jovens e os idosos. As pessoas se aproximam na calamidade – pregou Bassani.