O legado de Sakae Suzuki, 84 anos, preenche a cozinha da Rua Castro Alves, 690, no bairro Rio Branco, comandada pelo filho Masaki Suzuki, 58, com auxílio da filha dele, Sophia Suzuki, 22. E dá nome ao mais tradicional restaurante de culinária japonesa de Porto Alegre, que comemora 50 anos. Hoje chamado Legado Sakae’s, foi criado por ela em 1973 — à época, batizado Sakae's e localizado na Rua Vigário José Inácio, no centro da Capital — e ganhou novo endereço em 1981.
Em um balcão de madeira feito pelo saudoso Tadao Ecchuya, ex-marido de Sakae, falecido em 2016 — ano em que a palavra "Legado" foi incorporada ao nome do restaurante —, são servidas as receitas que a matriarca aprendeu ainda em Nagoya, no Japão, que vão de sashimis, tempurás, yakissobas e omu-raisus à especialidade da casa, o ensopado de carne suki-iaki. O empreendimento é resultado de uma saborosa combinação entre o respeito pela cultura ancestral e a liberdade de criação brasileira.
Aos 22 anos, em 1961, enquanto via seu país mergulhado na pobreza causada pelas guerras mundiais, Sakae gostava de ouvir o que diziam sobre o Brasil. Ela enfrentou os limites impostos pela família, deixou a cidade do interior onde vivia e embarcou com mais 800 compatriotas em um navio rumo à América do Sul. Foram 47 dias de viagem até que a jovem Sakae desembarcasse em Porto Alegre, espantada com a variedade de comidas e animais inteiros expostos no Mercado Público, ao lado do Cais. Não demorou muito para encontrar um meio de viver por aqui, mesmo sem falar o idioma.
— Primeiro, trabalhei em uma fazenda, vendia frutas na Lomba do Pinheiro. Depois, morei em Esteio e voltei para Porto Alegre. Fazia caixas de tofu e saía de bicicleta para vender na Protásio (Alves). Eu tinha habilidade com a bicicleta, subia lomba e vendia muito — conta, resumindo o processo que transforma soja em um substituto ao queijo de vaca.
Fazia isso ao mesmo tempo em que criava três filhos, que lhe deram seis netos e dois bisnetos. Foi na companhia da nora e sócia, Virginia Reis dos Reis Suzuki, 42 anos, que Sakae recebeu a reportagem, em uma mesa do restaurante, no começo da tarde de quarta-feira (30).
Sakae se diz tímida, o que justifica pelo sotaque e por considerar não ter um vocabulário tão vasto quanto o de receitas, mesmo depois de 62 anos morando em Porto Alegre. Ainda assim, adora conversar. Disposta e simpática, diz que é mais difícil compreender quem é carrancudo do que quem fala português rapidamente. Enfrenta a surdez e as diferenças culturais para manter os diálogos, geralmente vencendo a luta com sorrisos e paciência. Mesmo quando não entende bem a pergunta, responde algo que dá seguimento à troca de ideias. A interlocutora preferida é a cachorrinha Luna, três anos, adotada por Sakae na pandemia. A mascote só entende comandos em japonês.
— Eu não escuto, e ela não fala, a gente se entende — brinca a senhora, com a cadelinha no colo.
Clientela fiel
Quando abriu o primeiro Sakae’s, em 1973, com apenas sete mesas em um cubículo na Rua Vigário José Inácio, conquistou uma clientela ilustre que hoje estampa as paredes do amplo salão do restaurante em fotografias. O escritor Luis Fernando Veríssimo, o cineasta Jorge Furtado e centenas de estudantes que moravam por perto são lembrados por terem feito seus yakissobas e sashimis famosos na terra do churrasco.
Antes que sushi fosse popularizado e quando peixe cru ainda era um desafio culinário para o público porto-alegrense, as massas do yakissoba e do lámen dividiam o protagonismo do cardápio com o omu-raisu, uma espécie de rolo de omelete com recheio de risoto de frango e ervilha.
— Sinto muita gratidão e alegria por estar aqui e por ter construído tudo com a ajuda dessas pessoas boas — celebra.
O segundo marido, Tadao, foi responsável por construir o jardim de pedras com fonte, as estruturas do balcão e a decoração em madeira interna da casa. O companheiro também era cozinheiro. Sem conjugar alguns verbos no passado, Sakae perpetua:
— Conheci Tadao no restaurante. É engenheiro e cliente. Constrói e ajuda muita coisa.
Ritos e etiquetas
Requeijão, abacate, frituras, frutas e doces em peças de sushi não fazem parte do cardápio do Sakae’s. A combinação de peixe e arroz é apenas uma das iguarias orientais consagradas pelo restaurante nos pratos de cerâmica também importados do Japão.
— Sushi é simples, comida caseira que aprendi com minha mãe. Aqui tivemos que fazer algo mais bonito para vender — resume Sakae, destacando a diversidade de ingredientes que são utilizados nas outras receitas.
De acordo com o Consulado Japonês no Rio de Janeiro, o Washoku (palavra que significa cozinha tradicional japonesa, em reunião das grafias de “japonês”, “comida” e “harmonia”) foi considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Unesco em 4 de dezembro de 2013.
Pesquisadores da Divisão de Promoção da Saúde Discente (DPSD) da faculdade de Nutrição da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) resumem, em texto assinado pela nutricionista Fabiana Tanabe, um breve histórico do sushi: “O sushi é uma derivação do narezushi, em que o peixe era prensado entre duas camadas de arroz com sal, o qual passava por fermentação e gerava o ácido lático e acético. O narezushi demorava de dois meses até um ano para ficar pronto, sendo considerado lento e caro pelo descarte do arroz, que ficava fora de condições para ser consumido. O método surgiu no século VII, no Sudeste Asiático, e no ano de 718 teve seu primeiro registro em documentos do Japão. Dos anos 800 até o século XIX, a forma como era preparado o sushi sofreu inúmeras modificações, entre elas a substituição da fermentação pelo arroz avinagrado”.
Na hora de saborear, a ordem também é simples: os hashis (varetinhas de madeira utilizadas como talheres) devem estar posicionados horizontalmente em cima do prato. A mão direita suspende eles e a esquerda ampara para ajudar a abrir em formato de pinça, sem dedo certo ou errado para cada um dos instrumentos. Com a porção de comida preso entre as hastes, não se deve deixar cair arroz espalhado no shoyu (molho salgado à base de soja), muito menos mergulhar o peixe.
Ao final, deve se expressar a gratidão pela refeição e pela companhia:
— Arigato, gochisousama — ensina Sakae, juntando as palmas das mãos em frente ao pescoço e inclinando a cabeça para a mesma direção. — E gozaimasu, quando se está com alguém de mais idade — complementa, antes de se despedir cobrando que a reportagem volte ao Sakae em outro dia, para comer algo e provar o saquê da casa.