O Dia Nacional do Ciclista, celebrado neste sábado (19), recorda uma morte ocorrida em 2006, quando Pedro Davison foi atropelado por um homem que conduzia embriagado e em alta velocidade em Brasília. Oficializada em 2018, a data lembra o respeito necessário ao ciclista para que casos assim não se repitam e é um momento para ressaltar as vantagens de usar a bicicleta em deslocamentos diários.
Para marcar a data, GZH conta as histórias do cicloviajante Frederico Oderich, 31 anos, e do atleta Eduardo Macedo, 35. O primeiro tem uma oficina no Centro Histórico de Porto Alegre e vende bicicletas em uma espécie de brique digital sem fronteiras. Em rede social, combina conteúdos bem-humorados sobre as bicicletas e reflexões sobre a vida de ciclista na cidade e em viagens.
Já Macedo é líder do ranking gaúcho de ciclismo de velocidade em sua categoria etária. Faz todos os deslocamentos internos em cima do instrumento de trabalho, usando veículos com motor apenas quando necessário.
Fred e Macedo são dois personagens nascidos na Capital que representam, cada um à sua maneira, ideais comuns entre a comunidade ciclista.
O colecionador de momentos
Café passado e cigarro aceso, Frederico Oderich, 31, recebe o carinho de um cachorro da vizinhança que passa por ele. A cena é de uma segunda-feira inusitada na vizinhança na Rua Demétrio Ribeiro, no Centro Histórico, onde ele tem uma oficina de bicicletas, uma das únicas do bairro, que normalmente não abre nas segundas.
Dentro da sala comercial alugada por ele em março, o cicloviajante, mecânico e aspirante a influenciador digital abriga cerca de 40 bicicletas — a maioria modelos antigos que ele não quer vender. Até a metade de julho, Fred ainda não havia dado nome ao local, que flerta com os conceitos de oficina, ponto de encontro e butique.
Em 2009, aos 18 anos, Fred precisou caminhar por uma hora do centro de Porto Alegre até a casa dele, no bairro Bela Vista, depois de ser convidado a desembarcar de um ônibus por ter esquecido o dinheiro da passagem. Em outra ocasião, foi impedido porque estava com o cartão TRI da mãe dele. Após estes episódios, o jovem repensou a forma de se locomover pela cidade.
Uma tentativa bem-sucedida de ir ao cursinho de bicicleta mostrou que havia uma solução mais barata. Desde então, nunca mais considerou outro modo de locomoção urbana.
Em pouco tempo estava cruzando a cidade ou até mesmo pegando a estrada até o Litoral Norte, pedalando com apenas uma mochila nas costas e sem nenhum plano para vencer os quase cem quilômetros de freeway pelo acostamento. Em 2016, já estudante de Administração Pública na UFRGS, em uma viagem a Madri, na Espanha, para visitar a irmã, comprou uma bicicleta usada, acoplou um bagageiro e se pôs a pedalar pelo tempo que conseguisse no país europeu. O resultado foi uma experiência que revolucionou seu modo de enxergar o mundo.
— De carro ou ônibus pode até ser mais rápido, mas indo rápido às vezes perdemos coisas legais do caminho. Uma foto na estrada, algo assim. Pedalar é levar a casa junto contigo, igual uma tartaruga — compara.
— É uma viagem introspectiva e para curtir cada momento.
Fred conta, sorridente, que percorreu todo o litoral sul da Espanha, entre as fronteiras com a França e com Portugal, nos meses de verão. Quando voltou a Porto Alegre, já não era o mesmo. Mantinha a bicicleta como método de transporte urbano, mas queria ir mais longe.
Fez viagens ao interior do Estado e se continha para não empreender um mochilão pelo continente sul-americano. Explorou Estados do nordeste do Brasil pedalando, mirando em se mudar para Pernambuco para trabalhar com turismo.
No entanto, a bicicleta ainda era uma paixão. É preciso voltar até as publicações de 2018 no Instagram para encontrar fotos e vídeos em que a bicicleta não é o assunto principal. Naquele ano, ele já trabalhava como mecânico e vendedor em uma loja de departamento voltada para acessórios e vestimenta esportiva. O período rendeu aprendizados sobre manutenção de bicicletas e relacionamento com clientes.
Optou por deixar o emprego no ano seguinte. Seguia determinado a migrar para Pernambuco e queria juntar o dinheiro para isso trabalhando em um bar. Com a chegada da pandemia, as bicicletas de Fred e de vários outros amigos viraram alternativa de lazer em um cenário que desaconselhava interações físicas.
Thaís, amiga que dividia apartamento com ele na zona norte da Capital, foi a primeira cliente, ainda informalmente. Assim que a foto da Caloi 10 dela, restaurada por ele, foi parar na rede social, outros amigos começaram a querer o serviço de revisão para pedalar suas bicicletas até então abandonadas em casa.
Fred ainda não queria nem cobrar pela função, mas Thaís o convenceu a repetir os preços de uma mecânica do bairro. Foi o começo da trajetória que chegou, em 2023, aos três anos.
Pelas contas que ele faz, com base em anotações no celular, as ruas de Porto Alegre, Rio, São Paulo, Natal, Pernambuco, Belo Horizonte e outras cidades já foram pista para mais de mil bicicletas em que ele fez algum tipo de manutenção, personalização ou até mesmo construiu do zero para venda.
— Esta rotina chegou a ficar muito pesada. Hoje conto com um parceiro que me ajuda a vender as bicicletas em um perfil da rede social que não é o meu pessoal, o que libera mais tempo para eu me dedicar aos projetos autorais.
Em 2021, Frederico tentou se desfazer do estoque de bicicletas para partir em direção à sonhada mudança para Recife, mas uma única, um modelo vintage, com um cestinho junto ao guidão, teimava em não agradar nenhum cliente. A alternativa foi sorteá-la na rede social que era, até então, apenas de assuntos pessoais.
O resultado foi uma avalanche de novos seguidores — atualmente, mais de 20 mil — e um engajamento que ele nunca tinha visto. Conseguiu repassar a bicicleta, mas as visitas ao perfil impulsionaram a chegada de novos projetos.
— Nada é definitivo, todos estes planos que te conto aqui eram num ritmo de "vamos ver mais uns meses como vai ser", assim como foram os dois anos de pandemia. Quando vi que estava conseguindo mexer e vender uma bicicleta por semana, em média, percebi que isso podia ter futuro. E não só pelo dinheiro, mas por estar colocando bikes de que gosto na rua, com gente legal que redescobriu o pedal a partir do meu trabalho — celebra Fred.
Os anúncios do trabalho nas redes sociais são vídeos curtos, em formato de stories, em que ele mostra a bicicleta com a câmera do próprio celular. Em poucos segundos, ele mistura conhecimento técnico com referências populares e chama a atenção.
O atleta obstinado
Eduardo Macedo, 35, líder do ranking estadual de ciclismo de velocidade em estrada para homens com mais de 30 anos, não se lembra da primeira vez em que subiu em uma bicicleta. O pai dele, Arthur Macedo, falecido em 2011, aos 91 anos, era mecânico quando Eduardo, o terceiro de seis filhos, nasceu.
— Cresci dentro da bicicletaria. Acordava, ia para a escola e, na volta, passava o resto do dia ajudando o pai. Lembrar das primeiras pedaladas é como querer que eu me lembre de dar os primeiros passos. Não tem como — relata.
Por outro lado, Eduardo diz que lembra de, aos seis anos, usar os brinquedos e bonecos como ferramentas para "trocar" pneus das bicicletas que o pai trabalhava. Nas manhãs de Volta Ciclística de Porto Alegre, nos anos 1990, Macedo acordava com as sirenes das motos que abriam caminho entre as ruas da Capital.
O trajeto de cem quilômetros passava em frente à casa dele pela manhã, em uma dinâmica que não bloqueava as vias por mais do que meia hora — apenas o tempo do pelotão de velocistas passar. Eduardo lembra de escalar as grades do portão da casa na Zona Sul para ver aqueles atletas, ainda sem saber que se tornaria um deles.
— Na primeira corrida que fiz, aos 12, não tinha ninguém da minha idade para fazer uma categoria. Era 2001, na Zona Norte, e meu pai não aceitou me inscrever na categoria por idade. Aí tive que competir contra uns caras que só as pernas eram maiores que todo o meu corpo... e levei uma surra — relembra. — Não aguentei o ritmo nem por duas voltas completas, o pelotão inteiro passou por mim umas quantas vezes.
Além da derrota, marcou o que Eduardo ouviu do pai após a corrida:
— "Esporte não é coisa para filho de operário". Ele disse a mesma coisa para a minha irmã mais nova, sobre Ensino Superior, que ela teria que namorar algum rico para conseguir fazer a faculdade que queria. Eu também nunca cogitei faculdade. Hoje penso em fazer, vejo que deveria ter olhado para isso antes, considerando o momento que meu corpo não responder mais como eu preciso para o esporte.
Por três vezes ao longo dos últimos 20 anos, Eduardo tentou ser ciclista de estrada em nível profissional. Cada vez que sua vida se ajeitava, no sentido financeiro, ele tentava mais uma vez. Em 2016, foi vice-campeão gaúcho na categoria sub-30. A tentativa mais recente, em 2019, tem dado certo graças a muita disciplina.
Quatro anos atrás, Eduardo traçou como objetivo alcançar as primeiras posições do ranking nacional em 2024. Sem patrocínio, cumpre uma carga horária de trabalho para ter renda e é treinado por um casal formado por educador físico e nutricionista.
— Estou fazendo o que tenho que fazer e me virando para isso. Se preciso trabalhar menos, sacrifico minha vida financeira em prol disso, além da vida social. Em nenhum momento eu planejo algo diferente para mim, só depois que eu cumprir este objetivo, aí vou reavaliar as próximas metas — pondera, atendendo a reportagem nos fundos da oficina de bicicletas onde trabalha, na Avenida Silva Só.
Todos os dias úteis ele acorda às 5h e sai do seu apartamento na Praça Garibaldi para pedalar por duas horas. O exercício diário precisa ser feito a uma média de 30 quilômetros por hora para somar 300 quilômetros por semana. Nas vésperas de provas, treina mais e trabalha menos na oficina. Depois do pedal, uma nova refeição, banho e preparativos para trabalhar na oficina a partir do horário do almoço.
— Sabe quando comecei a ganhar corridas? Quando parei de me comparar com meus adversários, que não precisam trabalhar em oficina para se sustentar como eu. Cada um com sua sorte. Que bom que tenho força para fazer isso — reflete.
Segundo Macedo, cada uma das 48 etapas estaduais de 120 km de extensão, vencidas recentemente por ele, rendeu cerca de R$ 300. Sem grandes apoiadores financeiros, precisou fazer uma rifa e financiar a bicicleta profissional utilizada no estadual e em provas de grande distância na serra gaúcha, no estilo chamado de Gran Fondo, organizadas por empresas internacionais em 2023. O veículo custa tanto quanto um carro zero — coisa que ele garante que jamais compraria.
Enquanto o ciclista almoçava em um restaurante perto de casa e era entrevistado por GZH, um homem sentou-se ao lado da ferramenta de trabalho estacionada junto à grade do estabelecimento e a observou.
— Achei uma aqui na internet igualzinha por R$ 50 mil — exclamou o mais novo torcedor de Macedo.
— Tá barata, pode comprar que é um bom negócio — respondeu o mecânico-atleta.
Macedo não é tão alto ou encorpado quanto os atletas vistos em imagens de competições internacionais. Mentalmente, porém, o filho de operário não deixa que duvidem da determinação e disciplina que o levaram ao nível de esportista profissional, proibido a ele na adolescência. Ele projeta:
— Não me vejo não sendo campeão estadual neste ano. E, se eu vencer, vou cumprir uma promessa que fiz.
Por medo dos efeitos do próprio azar, este repórter não vai revelar qual foi a promessa confidenciada pelo entrevistado. Fica para uma eventual nova matéria em dezembro, quando o campeonato estiver concluído.