O som da água corrente na Rua da Represa vem do Arroio Moinho, canal que corta o bairro Coronel Aparício Borges, na zona leste de Porto Alegre. A região é uma das classificadas como de risco "muito alto" para enxurradas e erosão do solo na margem do arroio, de acordo com relatório da prefeitura, divulgado no mês passado, o primeiro elaborado desde 2013, quando 119 pontos haviam sido mapeados. Atualmente, são 142.
Em menos de uma década, dois moradores da Rua da Represa perderam a vida em razão das enxurradas. A primeira vítima foi Carine Gonçalves, 35 anos, que durante um temporal em 8 junho de 2017 foi arrastada junto de sua casa pelo arroio. Após seis dias de buscas, o corpo da moradora foi encontrado nas águas do Guaíba. Conforme a Defesa Civil, à época, cerca de 50 casas foram atingidas pelos efeitos do temporal.
No caso mais recente, em agosto do ano de 2022, Daner Hernandez Silva, 45 anos, ajudava familiares a deixarem suas casas em meio a um temporal quando caiu na água. O homem foi localizado na manhã seguinte, também no Guaíba, próximo ao Anfiteatro Pôr do Sol. Ambas as mortes estão longe de serem esquecidas.
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Além da recordação ao passar pelo endereço das vítimas ou ao ver um pequeno memorial montado por moradores, o risco de que uma nova tragédia possa acontecer é um constante lembrete. Para a líder comunitária e conselheira da Região Partenon, Maria Elisabete Marques Bones, 62 anos, é difícil voltar ao local onde havia pelo menos quatro casas à época — além da residência de Carine, a da irmã, a da filha da conselheira e a de outro conhecido. Depois da tragédia, a irmã de Carine foi para um apartamento no bairro Mario Quintana, encaminhado por meio do Departamento Municipal de Habitação (Demhab). Já a filha de Maria Elisabete mora com ela atualmente.
Segundo a conselheira, algumas famílias aceitaram sair da região por meio de programas do Demhab. Conforme a secretaria, foram realizados 114 cadastros de moradias à beira do Arroio Moinho: 32 famílias manifestaram interesse em sair do local, 47 manifestaram desinteresse e quiseram permanecer, e sete não se manifestaram. No total, 21 famílias deixaram a Represa.
Quem não quer morar melhor? Aí, escutamos: "Foram fazer casa na beira do arroio". Todos aqui moram onde conseguem e podem.
MARIA ELISABETE MARQUES BONES
Conselheira da Região Partenon
— Muita gente mora aqui há muitos anos, e eles pensam que vão para um lugar longe. Eles não querem ir porque terão mais gastos, como condomínio. Teve quem quis ir e preencheu os requisitos. Às vezes, o condomínio chega a até R$ 200. Dependendo do salário de quem trabalha com reciclagem ou faxina, como vai? Quem não quer morar melhor? Aí, escutamos: "Foram fazer casa na beira do arroio". Todos aqui moram onde conseguem e podem — diz a conselheira.
Ao mesmo tempo em que muitos preferem permanecer no que consideram o sossego do lar, há quem perca o sono.
— Estava marcando (na previsão do tempo) que ia dar vento e temporal, e eu já fiquei com o coração na mão. Não dormi. Começa a umedecer o solo, e meu medo é esse. Fico em alerta o tempo todo — diz a dona de casa Cléia Martinez, 62 anos.
A preocupação de Cléia é com os galhos das árvores muito próximos de sua casa. A poda, segundo a moradora, é necessária tanto para evitar danos nas residências, quanto para não cair no arroio e atrapalhar o curso da água.
— Tenho medo da sanga, porque, quando enche, enche muito rápido. As pessoas colocam lixo na sanga, e temos medo de outra tragédia — diz a cuidadora Tamires dos Santos Martins, 35 anos.
O lixo não apenas causa o assoreamento do arroio, mas a proliferação de ratos e de insetos, como o mosquito Aedes aegypti. Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), até a última terça-feira (16), Porto Alegre registrava 1.675 casos confirmados de dengue neste ano, sendo a maior parte contraída dentro do município.
Estava marcando que ia dar vento e temporal, e eu já fiquei com o coração na mão. Não dormi. Começa a umedecer o solo, e meu medo é esse. Fico em alerta o tempo todo.
CLÉIA MARTINEZ
Dona de casa, moradora da região
A represa não se limita ao nome da rua, pois, de fato, existe uma barragem no arroio. Quem olha para a parte alta percebe que a vegetação e o lixo reprimem a passagem de água. Ao focar na parte baixa, é possível acompanhar a queda da água em direção ao córrego com mais vegetação e resíduos. Além do risco atribuído à enxurrada, existe o de queda para os pedestres que fazem a travessia sobre a represa. O local é estreito e sem corrimão. Segundo as moradoras, havia a proteção anos atrás, que foi furtada.
— Eu ainda tenho esperança de ver a Represa aparecer na mídia com um olhar diferente junto à prefeitura, ao Demhab, aos órgãos competentes, que estão fazendo, mas falta muito ainda — diz Maria Elisabete.
Ajuda internacional
Representantes do banco alemão KfW estiveram na Rua da Represa no início de maio. A visita fez parte de uma rodada de negociações para a elaboração da carta consulta a ser apresentada ao Tesouro Nacional, visando a contratação de operação de crédito com aval da União. Conforme a prefeitura da Capital, o KfW atua em projetos relacionados a temas como mobilidade, cidades resilientes e desenvolvimento urbano e, além disso, presta apoio para implementação de projetos que comprovem a sustentabilidade técnica, financeira e ambiental.
Um grupo esteve em áreas que necessitam de intervenções estruturais e que podem, futuramente, receber investimentos. A conselheira Maria Elisabete acompanhou parte do roteiro com o grupo alemão e representantes da prefeitura:
— Eles ficaram apavorados com a situação.
O financiamento, em fase inicial de desenho, projeta a captação de 100 milhões de euros, e a prefeitura pretende utilizar esses recursos em projetos de drenagem urbana, com prioridade para três arroios: Moinho, Guabiroba e Cavalhada.
— Estamos tratando com essas grandes organizações financeiras que podem nos ajudar a mudar realidades, como no caso do Arroio Moinho. O KfW está trabalhando em uma solução integral, a intenção é fazer um projeto de maior porte — diz o secretário municipal de Habitação e Regulação Fundiária (SMHARF), André Machado.
Entenda os tipos de risco para essa região
- Enxurrada — Escoamento superficial de alta velocidade e energia, provocado por chuvas intensas e concentradas, normalmente em pequenas bacias de relevo acidentado. Caracterizada pela elevação súbita das vazões de determinada drenagem e transbordamento brusco da calha fluvial. Apresenta grande poder destrutivo.
- Erosão de margem fluvial — Desgaste das encostas dos rios que provoca desmoronamento de barrancos.
Fonte: Tabela de Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade)