Poucos metros separam as casas e a água na Ilha Mauá, no bairro Arquipélago, em Porto Alegre. Mas isso não parece ser uma grande preocupação para quem vive lá. Prevale a sensação de morar em um lugar seguro e tranquilo entre as justificativas para permanecer na ilha, mesmo que o risco de inundações e alagamentos seja "muito alto", de acordo com relatório da prefeitura da Capital, divulgado no mês passado. Foi o primeiro elaborado desde 2013, quando 119 pontos haviam sido mapeados na cidade. Atualmente, são 142.
— Às vezes, a água enche (o terreno), mas não muito. Depois, vai embora por causa do vento. Mas é tranquilo para a gente que mora aqui — acredita Dara Nascimento, 27 anos, moradora da ilha há 11 anos.
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Para chegar até a casa de Dara é preciso passar por um corredor de trapiches. O beco, como os moradores chamam, faz a ligação entre pelo menos seis palafitas — casas erguidas em estacas de madeira. Por conta da convivência com água e solo úmido, o trapiche entre as palafitas fica instalado de forma permanente, sendo necessária a manutenção quando alguma madeira apodrece. Segundo a jovem, mesmo quando não há cheias no Guaíba, o chão é barrento. Ela também detalha que, em temporadas mais secas, parte da passarela em direção ao centro da ilha é desmontada e as madeiras são levadas até um vizinho.
Tem anos que não enche, vem um pouco de água e vai embora, tem vezes que a água fica um tempão. Mas a gente gosta.
DARA NASCIMENTO
Moradora da Ilha Mauá
— No verão, é a melhor época de morar aqui. Tem anos que não enche, vem um pouco de água e vai embora, tem vezes que a água fica um tempão. Mas a gente gosta — diz a jovem.
A dona de casa Gilmara Rodrigues, 45 anos, sogra e vizinha de Dara, não tem a mesma tranquilidade da nora. Quando a água começa a subir, ela não fica no local:
— Vou para o aluguel. Não dá para ficar aqui porque minha casa está com a estrutura podre e tenho dois filhos pequenos. Não tem condições de ficar, porque fica arriscado.
Cheia de 2015
A última cheia que marcou a memória de quem mora nas ilhas foi em outubro de 2015, quando o Guaíba atingiu o nível de 2,76 metros, a maior marca desde 1967, de acordo com o Centro Integrado de Comando da Cidade de Porto Alegre (CEIC). Cerca de 2 mil pessoas que moravam nas ilhas tiveram de sair de suas casas.
— A enchente esteve na minha porta da frente, pela metade, invadiu a casa toda. Tive que tirar meu pai daqui, que era idoso, porque não tinha como cuidar dele. Foi bem dramático. Para atravessar para o outro lado e poder buscar os mantimentos, tínhamos que ir de barco ou com água na cintura — relembra a artesã Oracilda Marques Ribeiro, conhecida como Cida, 63 anos.
Para ela, o motivo de não sair de casa é evitar que os bens materiais sejam saqueados. Antes da água começar a entrar na casa, ela recorda que conseguiu erguer os eletrodomésticos da cozinha e desmontar o que foi possível. O sofá foi o único que se perdeu completamente em 2015, diz Cida. Sem energia e água encanada, ela e os vizinhos buscavam mantimentos no salão da paróquia.
O risco de novas intempéries assusta a moradora. Mas o medo não é maior do que as raízes mauadenses, como ela chama as pessoas que moram na Mauá.
— Nasci e me criei na ilha, é meu chão. O ar é diferente. É gostoso morar na ilha, o povo todo é unido. Se acontece alguma coisa, todo mundo corre, todo mundo ajuda. É um por todos e todos por um. Em outro lugar, eu não ia me sentir bem, ia estar faltando alguma coisa. Só tem essas coisas (as inundações), mas a gente que é morador antigo, com a idade que estou, se acostumou — afirma Cida.
Nasci e me criei na ilha, é meu chão. O ar é diferente. É gostoso morar na ilha, o povo todo é unido. Se acontece alguma coisa, todo mundo corre, todo mundo ajuda. Só tem essas coisas (as inundações), mas a gente que é morador antigo, com a idade que estou, se acostumou.
ORACILDA MARQUES RIBEIRO
Artesã, moradora da ilha
Rede de apoio
O padre Rudimar Dal'Asta, 52 anos, pároco da Igreja Nossa Senhora da Boa Viagem, na Ilha da Pintada, é quem acompanha de perto as famílias do arquipélago. Em poucos metros de caminhada pela Ilha Mauá, por exemplo, o padre para algumas vezes para cumprimentar os moradores e recebe convites para tomar um cafezinho.
— É um pessoal muito bom, trabalhador, que se ajuda — define o religioso.
Em 2015, Rudimar tinha recém assumido a paróquia quando passou pela experiência da cheia do Guaíba. Segundo ele, a Defesa Civil fez o alerta, mas a água subiu rápido e logo invadiu as casas. O padre relata que foram mais de 20 dias de trabalho intenso para atender às demandas das famílias e garantir o mínimo de suprimentos, como comida, água e roupas.
— Não tinha dia e noite. Fazíamos a entrega de 600 cestas básicas por dia, muitos produtos de limpeza, muitas roupas. Nesta parte da ilha, só dava para vir de barco — recorda o padre.
Até hoje, é o páraco quem coordena o recebimento e distribuição de doações. Mas, segundo ele, depois da pandemia, a chegada de donativos caiu substancialmente.
— As ONGs ligavam para mim para avisar que iriam entregar 600 marmitas, no outro dia, 500, no outro, mais 400. A cada dia, era distribuído num ponto diferente. Eu sempre dizia "pode trazer", era todos os dias assim. No auge da pandemia, entregamos 3 mil cestas básicas por dia. Nós não paramos de trabalhar, mas o que aconteceu com as doações é uma grande pergunta, parece que terminou o lado solidário das pessoas — reflete.
Entenda os tipos de risco para esta região
- Alagamento — Extrapolação da capacidade de escoamento de sistemas de drenagem urbana e consequente acúmulo de água em ruas, calçadas ou outras infraestruturas urbanas, em decorrência de precipitações intensas.
- Inundação — Submersão de áreas fora dos limites normais de um curso de água em zonas que normalmente não se encontram submersas. O transbordamento ocorre de modo gradual, geralmente ocasionado por chuvas prolongadas em áreas de planície.
Fonte: Tabela de Classificação e Codificação Brasileira de Desastres (Cobrade)