Se dependesse da arrecadação com multas aplicadas aos ônibus para melhorar a qualidade do transporte público de Porto Alegre, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) estaria em maus lençóis. Isso porque nas últimas duas décadas, quase 80% das multas administrativas aplicadas aos coletivos sequer foram pagas.
Em valores não atualizados, foram cobrados R$ 19,3 milhões em 47.253 autos de infração. Porém, os concessionários pagaram somente 9.982 destas infrações, o que corresponde a cerca de R$ 2,8 milhões — ou apenas 21,12% do total.
Cerca de R$ 16,5 milhões ainda estão pendentes de quitação por parte das empresas de ônibus que operam na Capital. As informações foram obtidas por GZH através da Lei de Acesso à Informação (LAI).
Para se ter ideia do tamanho da inadimplência, nenhuma multa aplicada entre 2001 e 2007, por exemplo, foi paga até hoje. A quitação zero voltou a se repetir em 2020 e 2021, anos mais agudos da pandemia.
Entretanto, o cenário não melhorou muito no ano passado, quando só 61 das 1.607 autuações da EPTC para os coletivos foram pagas — apenas 3,8%. Neste ano, das 228 infrações registradas até fevereiro, nenhuma foi quitada.
As infrações administrativas são aquelas que relativas às leis municipais e não ao Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O valor arrecadado com essas chamadas multas de operação é usado para criação de projetos de segurança viária e custeio de implementação destes projetos.
Multa por descumprir tabela horária é de R$ 624
Nos 22 anos fechados, sem contar 2023, os ônibus da Capital receberam uma média de seis autuações por dia. Olhando para os números desde 2016, quando foi assinado o primeiro contrato de operação por licitação entre empresas e prefeitura, a média sobe para 10 multas por dia.
A principal razão para que os veículos sejam penalizados é bem conhecida pelos usuários do sistema: descumprir a tabela horária oficial. Desde 2001, foram 29.713 multas por este motivo, fatia que significa 62,8% do total.
Ou seja, de cada 10 infrações cometidas pelos coletivos de Porto Alegre, oito não são pagas e seis são por não cumprir horário. Cada descumprimento da tabela de viagens ocasiona uma penalização de 118,78 Unidades Financeiras Municipais (UFMs) — que, atualmente, correspondem a R$ 624,26.
Mas não é só pelos atrasos que os coletivos que circulam em Porto Alegre recebem multas. Entre as quase 50 mil autuações desde 2001, outros temas também se destacam. O segundo motivo pelo qual a EPTC mais multa os ônibus é "não atender às normas, determinações ou orientações da fiscalização", com 10.754 registros. O diretor-presidente da EPTC, Paulo Ramires, traduz o significado desta autuação para os usuários do sistema:
— É quando depois de passar por fiscalização e receber uma notificação, a empresa descumpre o prazo ou não faz o ajuste solicitado. Então, é gerada uma multa.
EPTC fez mais de 13 mil vistorias nos ônibus em 2022
Para estes casos, o valor cobrado atualmente é de R$ 437 — ou 83,15 UFMs. Segundo Ramires, em 2022 foram mais de 13 mil vistorias realizadas por agentes da empresa pública nos ônibus — e neste ano, já foram mais de 3 mil. O diretor da EPTC ainda cita que são feitas ações específicas em alguns casos, principalmente, para conferir os descumprimentos da tabela horária e as condições dos veículos.
Esta última, aliás, é a terceira razão pela qual mais os ônibus recebem multas: "colocar em tráfego veículo de transporte coletivo em mau estado de conservação ou higiene". A cobrança dessa autuação é a mesma feita para o não atendimento dos pedidos da fiscalização: R$ 437. Entretanto, o número de autuações já é bem menor que os dois primeiros motivos, são 3.513 multas desde 2001.
Com mais de mil autos de infração registrados desde 2001, ainda aparecem motivos como andar com o letreiro do ônibus apagado ou não informar corretamente a linha do ônibus, ou então não informar junto a porta de entrada o valor da passagem. Depois disso, o ranking reduz bastante a quantidade de notificações com temas como recusar o embarque de passageiro, transitar com passageiros fora do itinerário, circular com as portas do ônibus abertas, entre outras razões.
Apenas uma multa por ultrapassar limite de passageiros
Um dado que chama atenção entre as quase 50 mil multas aplicadas aos coletivos de Porto Alegre nos últimos 22 anos é que somente uma vez foi registrada uma autuação por "transportar passageiro além do número licenciado".
O registro é do dia 5 de agosto de 2020, às 16h08min, período em que a pandemia ainda era uma realidade forte e acentuada. Na época, o transporte público operava com restrições de lotação e uso obrigatório de máscaras dentro dos coletivos, entre outros requisitos.
E, talvez, só por isso, um ônibus tenha sido multado pela primeira vez por carregar mais gente do que deveria — mesmo que não fosse por estar lotado. Mas o usuário cotidiano do transporte público sabe que se espremer entre outros passageiros não é algo tão raro para que apenas uma multa tenha sido registrada em 22 anos.
Entretanto, para o diretor-presidente da EPTC, o dado faz sentido. Ele reforça que a multa registrada em 2020 não foi porque o ônibus estava superlotado, mas porque deveria transportar menos gente em razão da pandemia.
Sem as restrições de ocupação, no mundo normal, Ramires não acredita que o sistema sofra com superlotação. O que justificaria o fato de não existirem multas por este caso. Ele explica que todo sistema de engenharia, seja desde a eletricidade, saneamento, até um sistema de transporte público, é desenhado para operar em capacidade máxima nos horários de maior uso. No caso do transporte, normalmente, são os horário de pico.
— O sistema não pode ter uma oferta muito maior do que a capacidade máxima dele. Senão, fica sobressalente e caro. Todo sistema de engenharia é programado para trabalhar em capacidade máxima no momento de maior uso — contextualiza Ramires.
Quando um ônibus está superlotado?
Sobre o que pode ser considerado, então, uma superlotação, o diretor da empresa pública diz que há variações. Depende de cada veículo que opera na cidade. É feito um cálculo usando o número de usuários sentados e o espaço em metros quadrados no interior do carro, assim define-se quando passageiro podem ficar de pé dentro do coletivo.
Mas, ele garante que a prefeitura monitora o sistema para tentar buscar soluções onde os usuários sentem problemas. O programa Mais Transporte, lançado pela prefeitura como carro-chefe nas alterações do sistema, vem trabalhando há dois anos nesse sentido.
— Ainda estamos reestruturando o sistema para o depois da pandemia. Sabemos que há linhas com ocupação maior em alguns horários de pico, e estamos sempre buscando aumentar tabela nestes pontos — garante o diretor-presidente da EPTC.
Os consórcios e as linhas mais multadas
Se as multas são emitidas, não é a esmo. Do outro lado, existem itinerários e consórcios punidos pelos descumprimentos. Olhando para os dados das quase 50 mil multas às quais a reportagem teve acesso, é preciso fazer uma divisão. Até 2016, as empresas operavam em três consórcios (Conorte, STS e Unibus) mais a Carris.
A partir de 2016, a licitação criou quatro consórcios (Viva Sul, Via Leste, Mais e MOB), além da Carris. No período pré-licitação, o conjunto mais multado foi o Conorte, que operava na Zona Norte, seguido por Unibus, da Zona Leste, Carris e STS, da Zona Sul. Depois da licitação, quem assumiu a ponta foi o consórcio Viva Sul, seguido por Carris, MOB, Mais e Via Leste.
Olhando para o cenário pós-2016, quando a média de multas também subiu, Viva Sul e Carris à frente do ranking não são uma surpresa. Como a própria empresa pública comumente explica, ela opera as linhas que mais carregam usuários e também fazem os trajetos mais longos (os famosos Transversais).
O cenário é parecido com o Viva Sul, com linhas que ligam o sul da cidade à região central. A MOB também tem trajetos longos na Zona Norte. Além disso, estes dois consórcios e a Carris são responsáveis por quase 80% do sistema, enquanto Mais e Via Leste se dividem com pouco mais de 10% cada.
Entre as linhas, o registro da EPTC tem um problema. Buscando pelo nome da linha (exemplo: Transversal 1, Caldre Fião, Rubem Berta), 6.336 não têm esse dado. Pelo número da linha (exemplo: T1, 110, 441), o registro é vago em 7.527 casos.
O único campo preenchido em todas as quase 50 mil autuações é apenas a qual consórcio o veículo pertence. Ainda assim, nos dados disponíveis, é possível encontrar entre algumas linhas com mais multas itinerários como T1, T11, 370, T7 e R31, entre outras.
Operadores do sistema discordam de autuações
A falta de pagamento das multas aplicadas pela EPTC não é apenas uma negativa simples das empresas que operam na cidade. Segundo o engenheiro de transporte da Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP), Antônio Augusto Lovatto, os concessionários do sistema discordam da aplicação de grande parte das multas, principalmente as de falta de cumprimento da tabela horária e de falta de limpeza e higienização dos ônibus.
Lovatto justifica que o sistema de ônibus da Capital tem um índice de pontualidade na partida das viagens (saída dos terminais, seja bairro ou centro) de 99%. E que os atrasos são gerados ao longo do caminho, com os efeitos do trânsito.
— Essas multas aplicadas pela EPTC são em, sua imensa maioria, no ponto final das linhas. O ônibus teve todo o trajeto com efeitos do trânsito e é multado por algo que está além do seu controle. Além disso, não são multas porque o serviço não foi cumprido, pelo contrário: os passageiros chegaram ao destino, apesar do atraso causado pelo trânsito — defende o engenheiro da ATP.
Circulação causa sujeira
Em relação às autuações por má conservação e higiene, Lovatto pontua que os veículos saem da garagem pela manhã limpos e rodam durante o dia e, naturalmente, vão sujar ao longo do dia. Ele aponta que o problema ainda acentua-se em dias chuvosos:
— Motoristas e cobradores não têm como limpar o ônibus no meio do caminho, eles nem têm autorização legal para fazer isso. Muitas linhas de regiões extremas ainda circulam em estradas de chão. Não há como o carro se manter limpo o dia todo. Por isso, eles são lavados diariamente nas garagens.
Essa é a razão pela qual Lovatto afirma que as empresas debatem judicialmente o não pagamento das multas.
— Se entendemos que é um problema nosso, um erro, descumprimento, pagamos sem questionamento. Mas, nestes casos, que são a grande maioria, temos essa discordância e vamos debater. A EPTC tem diversas ferramentas para verificar porque o ônibus atrasou, como o GPS, por exemplo — diz Lovatto.
Falta de regulamentação e debate na Justiça
O diretor-presidente da EPTC, entretanto, pontua outra razão para o não pagamento das multas: a falta de regulamentação por parte da prefeitura. Segundo ele, no período pré-licitação, a legislação sobre o tema era vaga e a relação entre prefeitura e empresas complicada.
Por isso, a EPTC recorre judicialmente dos valores não pagos até hoje, garante Ramires. Depois da contratualização do serviço, um novo projeto de lei com o rito processual das autuações precisou ser votado, o que demorou ainda mais em razão da pandemia. Aprovada em 2020, a lei passou a valer na metade de 2021, quando a prefeitura começou a emitir os autos de infração para a cobrança às empresas.
— Tão logo iniciou a operação com a licitação, nós entramos com ações judiciais para cobrar todo esse bloco de multas não pagas de 2001 até janeiro de 2016. Todas elas estão sendo cobradas em âmbito judicial. E desde 2021, com a nova legislação, as multas aplicadas após 2016 estão em processos de notificação, recursos, processos administrativos. Estão sendo respeitados esses prazos.