Após um período em que diversas vias da região ficaram marcadas pelo silêncio e pelo esvaziamento, as ruas da Cidade Baixa, em Porto Alegre, voltaram a ser ocupadas por grande público, nos últimos meses, durante as noites e as madrugadas. Desde o fim do Carnaval, aglomerações de jovens em pontos do bairro têm sido mais frequentes, tais quais no período anterior à pandemia.
Ainda que, segundo autoridades, as concentrações sejam menos expressivas do que em 2019, o retorno do som alto e do consumo de bebida nas calçadas voltou a preocupar moradores do entorno. Naquele ano, foram registrados diversos episódios de tumulto e conflitos envolvendo frequentadores e a Brigada Militar.
Na época, os problemas eram registrados em diversas ruas e avenidas, especialmente na esquina da Rua da República com a General Lima e Silva, na João Alfredo e José do Patrocínio. Agora, o movimento noturno se concentra principalmente em um novo ponto: na Rua Joaquim Nabuco, próximo ao cruzamento com a José do Patrocínio, onde há presença de diversos bares.
GZH esteve no local numa sexta-feira e constatou que a presença do público começa a aumentar após as 22h. A partir desse horário, pessoas tomam as calçadas, chegando a ocupar parte da via e obrigando os carros a diminuir a velocidade.
A reportagem também visitou a Padre Chagas, no Moinhos de Vento, que acumula bares fechados e vê mudança de perfil do público noturno; e o 4º Distrito, que busca virar protagonista na noite da cidade, mas com o desafio de não repetir problemas de outras regiões.
A atendente Gabriela Brambilla, 20 anos, costuma frequentar a Cidade Baixa com as amigas. Para ela, o fato de muitos estabelecimentos em volta se manterem ativos faz com que mais pessoas permaneçam na esquina.
— Alguns bares desse ponto demoram mais para fechar. Então acaba que várias pessoas se juntam em um mesmo lugar, pois é uma opção para consumir por mais tempo — afirma.
Apesar de todos os estabelecimentos oferecerem a parte interna aos clientes, a maioria dos ocupantes opta por ficar do lado de fora. Para muitos, como a estudante Júlia Vieira, 23, estar ao ar livre é mais vantajoso do que permanecer em um local específico.
— Muitos bares são quentes e apertados, além do som ambiente ser muito alto. Quando a gente fica na rua é mais fácil de conversar, além do ambiente ser mais fresco. É mais uma questão de clima — conta.
A Cidade Baixa voltou a ser frequentada por quem fica nas ruas e não dentro dos estabelecimentos, que era a nossa grande briga de 2019.
ROBERTA ROSITO
Presidente da Associação dos Amigos da Cidade Baixa
No entanto, a maioria dos estabelecimentos que funcionam nas redondezas não reconhece grande parte dos frequentadores como seus clientes. O dono do bar Hype, John Lennon Gonçalves da Silva, 30, atua nesse mesmo ponto há mais de uma década. Segundo ele, a esquina sempre foi movimentada. Mas, nos últimos meses, aumentou a presença de pessoas que não compram produtos dos comércios locais.
— A gente tem um problema que acontece sempre, e aumenta a partir das 2h (horário de fechamento dos bares). É um público que vem de outros lugares e toma conta da calçada. Essas pessoas acabam trazendo suas bebidas. Tem estabelecimentos que vendem esses "kits" (mistura de vodka com energético) e eles bebem na rua. É aí que surge o problema. Não são os bares que causam isso — explica o empresário.
O problema ao qual John Lennon se refere é o que vem preocupando os moradores das redondezas. A presidente da Associação dos Amigos da Cidade Baixa, Roberta Rosito, que mora nas proximidades, diz que os incômodos com frequentadores têm sido cada vez mais frequentes nos últimos meses.
— A Cidade Baixa voltou a ser frequentada principalmente por quem fica nas ruas e não dentro dos estabelecimentos, que era a nossa grande briga de 2019. Queríamos que os estabelecimentos tivessem condições de agregar os seus frequentadores. Mas quem tá frequentando não quer ficar dentro dos lugares. Esse pessoal não tem controle, e não há fiscalização. Infelizmente nossa vida está voltando a virar um inferno — conta Roberta.
As fiscalizações cobradas por ela dizem respeito às normas estabelecidas em decreto publicado pelo prefeito Sebastião Melo em março do ano passado. Entre as principais medidas estão a proibição da circulação de ambulantes da meia-noite às 7h e da venda de bebidas por telentrega para pessoas que estejam na rua. Além disso, bares e restaurantes devem ter atendimento restrito à área interna a partir das 2h. O decreto estabelece ainda que a Guarda Municipal fica autorizada a dispersar aglomerações.
No entanto, conforme Roberta, muitas destas regras acabam sendo descumpridas todos os finais de semana. Como resultado, além do som alto, ela relata ter de lidar com ambiente de sujeira e insegurança pelas ruas quando sai de casa.
— É inseguro sair de casa, eu preciso de companhia para sair e desvio todos os dias na minha calçada de sujeira. Vômito é uma coisa que, de sexta para sábado e sábado para domingo, tu encontra a cada três passos — complementa.
Frequentadores questionam postura da Brigada Militar
A estudante de publicidade Isadora Silva, 26, é uma das que tinha a Cidade Baixa como destino em todos os fins de semana. Mas, agora, decidiu se afastar da vida noturna no bairro.
A jovem conta que, em 2019, se encontrava com os amigos em frente aos estabelecimentos da José do Patrocínio. Para ela, a atividade era uma opção econômica de diversão e descontração. Após o fim do isolamento social imposto pela pandemia, sentiu que o clima havia mudado.
— Comecei a notar que o ambiente havia se tornado hostil. Principalmente em função do policiamento. A cavalaria da Brigada Militar passou a intimidar quem ficava na rua — opina a estudante, que diz achar exageradas as medidas vigentes na região.
— Todo mundo que vai morar na Cidade Baixa sabe que é um bairro boêmio. Faz muito tempo que é assim. Não sei dizer se voltaria a frequentar, se eu me sentiria mais tranquila, mas eu acho que talvez com um relaxamento das medidas que foram tomadas as coisas mudariam um pouco.
Todo mundo que vai morar na Cidade Baixa sabe que é um bairro boêmio. Faz muito tempo que é assim.
ISADORA SILVA
Estudante de publicidade
A mudança no clima com a chegada do policiamento também é mencionada pelos jovens que seguem frequentando o bairro. A maioria das pessoas que diz estar seguidamente na Joaquim Nabuco relata que o público começa a se dispersar com a chegada da cavalaria, o que costuma ocorrer durante a madrugada.
— Normalmente eles costumam colocar a gente mais para as calçadas, o que está tudo bem. O problema é quando eles partem para a agressividade. Já aconteceu de eu ser atingida com spray de pimenta — conta a atendente Alice Prado, 19.
Durante a presença da reportagem foi registrada a presença da BM, com viaturas e cavalaria que circulavam pelo bairro. Porém, até 1h da madrugada, nenhum policial parou em um ponto fixo. Uma das áreas também monitoradas pelos PMs é na Rua General Lima e Silva, entre a República e as proximidades com a Avenida Loureiro da Silva.
Ao contrário da Joaquim Nabuco, esses pontos já tinham presença mais significativa de jovens nas calçadas antes da pandemia. Ainda que muitos sigam se concentrando em frente a alguns bares, a quantidade foi reduzida, segundo pessoas que utilizam a via para passar a noite.
— Quando eu era mais jovem esse ponto era bem famoso e onde tinha o movimento na Cidade Baixa. Eu acabo voltando aqui pela memória afetiva que tenho pelo local — aponta o engenheiro de software Patrick Flores, 25, que também coloca a presença constante da polícia como um fator negativo para a permanência na rua.
Em resposta às alegações dos frequentadores, o comandante do 9º Batalhão de Polícia Militar (9° BPM), tenente-coronel Fábio Schmitt, afirma que a BM está cumprindo seu papel e que busca manter a ordem baseada na demanda da população que vive ao redor. Como exemplo, o comandante cita a obstrução de vias, tão comum em pontos de aglomeração e que acaba, segundo ele, trazendo prejuízos à população.
— Uma pessoa que quer ir para um hospital, ou uma pessoa que quer sair com alguém passando mal, ou ainda alguém que simplesmente quer sair da sua casa, passa por esses ambientes e encontra a rua fechada. Isso a gente não considera correto, nem algo normal. É uma das coisas que a coibimos e acontece muito nesses pontos da Cidade Baixa — afirma.
Ocorrências por perturbação de sossego e autuações em estabelecimentos crescem
O incômodo dos moradores gerado pela nova ocupação na Cidade Baixa pode ser traduzido pelo aumento de casos em que pessoas procuram a polícia para reclamar do volume do som na rua.
Dados parciais da Brigada Militar solicitados pela reportagem mostram que, no mês passado, foram ao menos 109 ocorrências por perturbação de sossego no bairro, enquanto no mesmo período do ano passado o número havia sido de 53. Até o dia 24 de maio, foram 64 casos, 22 a mais do que no mesmo período do ano passado, quando foram 42.
— Posso dizer que a gente tem atuado bastante, em todos os finais de semana e véspera de feriados. Realmente nesse ano 2023, houve sim um aumento (de ocorrências) — complementa o comandante da BM.
A quantidade de bares autuados por descumprimento das regras de convivência também vem aumentando. Segundo a Diretoria-Geral de Fiscalização de Porto Alegre, foram feitas 28 autuações no bairro apenas no mês de março, uma a menos do que em todo 2022.
Entre os motivos mais frequentes para que os estabelecimentos sejam notificados estão a reprodução de som alto que extrapole as dependências do local fora do horário permitido e o chamado uso indevido do alvará.
— O restaurante tem um regramento diferente do bar, especialmente em relação à venda de bebidas. Então eles pegam esse alvará para ter mais vantagens — explica a diretora-geral de fiscalização, Lorecinda Abrão.
Segundo ela, não há um motivo único que explique o crescimento de irregularidades causadas pelo aumento recente do público, já que o fim das restrições ocorreu ainda no final de 2021.
— O diagnóstico que a gente faz, baseado no que observamos, é que a cidade se abriu novamente. No ano passado onde a gente tinha um rescaldo da pandemia as pessoas ainda estavam saindo tanto. O Carnaval, por exemplo, foi mais tardio. Este ano, a partir de fevereiro parece que "estourou" tudo — conclui.