Gaúchos de nascimento e de coração sabem que o pôr do sol do Guaíba é o cartão-postal de Porto Alegre, uma das vistas mais bonitas do Rio Grande do Sul, do Brasil, quiçá do Mundo – pelo menos é o que diz nosso bairrismo. Todo belo cenário merece uma moldura que o valorize, por isso, a revitalização da orla, nos últimos cinco anos, era o que faltava para consolidar o local como um dos pontos de encontro favoritos da Capital, perfeito para passeios, rodas de chimarrão, romances, caminhadas, conversas entre amigos ou, simplesmente, para admirar o tão adorado pôr do sol.
Mas será que a orla do Guaíba, em especial o trecho 1, está preparada para todos?
Em série de reportagens ao longo deste ano, DG aponta as iniciativas bem-sucedidas e o que ainda precisa melhorar no que diz respeito à inclusão. Repórter e cadeirante, percorri 1,3 quilômetro entre a Usina do Gasômetro e a Rótula das Cuias para conferir de perto o que foi pensado de forma a facilitar o trajeto de pessoas com deficiência (PCD) e quais são os obstáculos que impedem a contemplação do cartão-postal mais famoso da cidade.
O estacionamento para PCDs e idosos fica situado próximo à Usina do Gasômetro, ponto de partida desta reportagem. Vale ressaltar que é o único local onde é permitido deixar o carro no trecho 1.
O veículo utilizado na reportagem só nos alcançou no final do trajeto, perto da Rótula das Cuias. Procurada, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) informou que, neste momento, não está prevista a ampliação das vagas na região da Orla.
Desafio intransponível
Ainda no começo do trecho, a primeira tentativa de chegar perto do Guaíba é um desafio intransponível. A cadeira de rodas precisa ser elevada por outra pessoa e, ainda assim, com muita dificuldade. Tampouco há qualquer sinalização para pessoas com deficiência visual poderem se locomover no entorno do mirante.
Desde a inauguração do trecho 1, o local é alvo de polêmicas. Trata-se do Mirante Olhos Atentos – uma intervenção artística de autoria do paulista José Resende, doada ao município pela 5ª Bienal do Mercosul, em 2005. Interditado em 2009 por conta de deterioração causada pela ferrugem, foi liberado em 2018, com a nova Orla. Atualmente, a guarda municipal precisa controlar o fluxo de pessoas, já que o mirante comporta apenas 20 por vez.
Mais do que isso colocaria a estrutura em risco. Como trata-se de uma intervenção artística, não pode ser modificada. Logo, não há rampas de acesso no local.
Detalhes nem tão pequenos
O Parque Moacyr Scliar, que compõe o chamado trecho 1 da Orla, inaugurado em junho de 2018, possui 1,3 quilômetros de extensão e fica situado entre a Usina do Gasômetro e a Rótula das Cuias. Projetado pelo arquiteto Jaime Lerner (1937 – 2021), conta com ciclovia e passeio público, mirantes, quadras esportivas, ancoradouro para barcos de passeios turísticos, quatro bares e um restaurante panorâmico. Há ainda um posto permanente da Guarda Municipal e cobertura de 39 câmeras de videomonitoramento.
À noite, a iluminação é uma atração à parte, com 47 postes inclinados e um piso iluminado por pontos de luz. O trecho está sob a responsabilidade da GAM3 Parks, consórcio entre as empresas Grupo Austral, Deboni Empreendimentos e a 3M Produções e Eventos.
Descendo por uma rampa de inclinação leve, é possível chegar perto do Guaíba e da área de lazer. Ali, o pôr de sol se traduz em versos, como cantam Kleiton e Kledir na música Horizontes. O cenário é perfeito para selfies, chimarrão e contemplação. Mas será que rima com acessibilidade? Em um primeiro olhar, sim, mas o perigo está nos detalhes. A grande circulação e a ação natural do tempo já começam a desenhar pequenos desníveis, buracos invisíveis à maioria, mas que podem ser armadilhas a quem se locomove sobre rodas.
Acessando o deque, entre o caminho cimentado e a estrutura de madeira sobre o Guaíba, há um degrau que dificulta o acesso.
Questionadas, a Secretaria do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) de Porto Alegre e a GAM3 Parks informam que trabalham em conjunto, visando melhorias de maior acessibilidade a todos os frequentadores do trecho 1 da Orla. Reuniões periódicas são realizadas entre a fiscalização da secretaria e equipe técnica da concessionária para discussão e busca de soluções para o local.
Onde é o banheiro?
Fácil de achar, difícil de acessar. Assim pode ser classificado o banheiro para cadeirantes do trecho 1. Como seguíamos pelo caminho cimentado, mais próximo ao deque, visualizamos o banheiro em um ponto rente à calçada, no qual seria necessário percorrer um trecho sobre a grama – algo bem complicado para quem é cadeirante –, e isso inclui descer e subir desníveis.
Ao tentar abrir a porta, constatei que estava trancada. Enquanto procurava algum guarda municipal a quem pudesse recorrer, um rapaz surgiu com a chave na mão e abriu o banheiro. O local parecia totalmente acessível, mas não foi possível verificar com mais atenção, pois a luz era fraca demais, tanto que, ao fechar a porta, a escuridão deixava até o vaso sanitário oculto. O “guardião da chave” garantiu que pediria que trocassem a lâmpada. Questionei sobre quem cuidava da manutenção no local, mas o rapaz não quis responder nem se identificar. Mais tarde, a assessoria de comunicação da GAM3 Parks explicou que quem fica com a chave do sanitário é um funcionário da concessionária, que pode ter se sentido intimidado com a reportagem. O temor tem razão de ser, relatou o assessor Filipe Chagas:
– Estamos enfrentando um problema grande ali na Orla. Flanelinhas e ambulantes ilegais estão invadindo o espaço e ameaçando os funcionários da concessionária. Todos possuem boletim de ocorrência. Está bem complicado, eles estão com medo de tudo. Estamos buscando todos os canais com a prefeitura, Guarda Municipal e outros, mas não estamos conseguindo evoluir.
Contrapontos
Retornar à calçada é um processo demorado. Aproximadamente 300 metros – o que parece um quilômetro para quem usa cadeira de rodas – separam uma rampa e outra.
A Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) esclarece, por meio de comunicado:
“Em relação à distância entre as rampas que conectam o nível da beira do Guaíba com o da Avenida Edvaldo Pereira Paiva, por se tratar de um desnível grande, as rampas precisam ser extensas para obedecerem a inclinação correta, o que inviabiliza termos rampas ao longo de todo o projeto”.
Como dizia o poeta espanhol Antônio Machado (1875 – 1939), “o caminho se faz ao caminhar”. Na versão dessa frase para cadeirantes, o caminho se faz das voltas que as rodas dão, deparando com armadilhas ao longo do trajeto, mas tentando se inserir nas paisagens urbanas, torcendo para que os próximos quilômetros sejam menos tortuosos.
Colocar um ponto final nesta reportagem exigiu mais transpiração do que inspiração: braços doloridos, preces, ansiedade, busca por respostas, dúvidas que seguem sem solução. O Parque Moacyr Scliar foi entregue aos porto-alegrenses há quase cinco anos, mas há ainda alguns ajustes para que os passeios sejam feitos mais de conversas, risadas e chimarrão e menos de preocupações e cansaço.