"Tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra...". Os versos de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) ganhariam novos contornos se fossem escritos hoje em dia. Do alto de seu posto na Praça da Alfândega, a estátua do poeta mineiro parece observar que não há uma, mas várias pedras no meio do caminho. E degraus, rampas malfeitas, entre outros obstáculos, verdadeiras armadilhas para qualquer pedestre desavisado. Para pessoas com deficiência (PcDs), são barreiras quase intransponíveis.
Michele Vaz Pradella, repórter do DG, e Cris Lopes, repórter de GZH, testaram a acessibilidade na 68ª Feira do Livro de Porto Alegre, que até dia 15 de novembro será ponto de passagem de milhares de pessoas, e contam se a Praça da Alfândega está mesmo preparada para receber todos.
Experiência de Michele
Já na chegada, obstáculos
Logo na entrada da Feira do Livro, na Praça da Alfândega, havia um degrau imperceptível para a maioria dos passantes, mas arriscado para quem se locomove sobre rodas. Com ajuda de outra pessoa, um cadeirante consegue superar esse obstáculo, mas outros ainda piores estariam por vir durante todo o trajeto: as pedras portuguesas.
Todos os anos, às vésperas da Feira do Livro, é feito o reparo no passeio público, com especial atenção às pedras que pavimentam o local. No entanto, as chuvas fortes e o fluxo intenso de pedestres provocam o desgaste na via. Há projetos antigos de revitalização do Centro que, por enquanto, figuram apenas no papel.
Em entrevista ao programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha, em agosto, o prefeito Sebastião Melo admitiu que há muitos buracos na pavimentação da Capital, e que, além disso, a conservação do asfalto é afetada por problemas de drenagem. Apesar dos investimentos recentes, soluções a longo prazo demandariam recursos que, de acordo com Melo, são insuficientes.
O prefeito lembra que Porto Alegre é uma cidade com 250 anos, que não foi construída pensando em questões de acessibilidade. No que concerne a sua gestão, disse que o problema das calçadas não é de fácil resolução e envolve diversas instâncias:
— O poder público precisa cuidar dos passeios que são dele e, para resolver determinados problemas, vai ser necessário que se corte as árvores que danificaram a via. É uma governança que precisa de várias composições para dar certo.
Reencontro
No século 18, a Praça da Alfândega era a porta de entrada para quem desembarcava no antigo porto fluvial. Desde 1955, transformou-se em um portal que abriga milhares de histórias, acolhe pequenos leitores, jovens entusiastas e literatos veteranos. É onde Porto Alegre se encontra e, há quase 70 anos, traduz-se em versos e prosas.
Nas ruas de um porto nem sempre alegre, um dos encantos é circular pela praça dos livros entre outubro e novembro. Porém, o que é um passeio agradável de primavera para muitos, para outros, transforma-se em um verdadeiro rali, com obstáculos a serem desviados, trepidações e riscos iminentes a cada metro rodado.
Após duas edições atípicas por conta da pandemia — em 2020, apenas no modo online, em 2021, em formato híbrido — a Feira do Livro retornou a seu formato presencial, com sessões de autógrafos, palestras, oficinas e o tão esperado reencontro dos porto-alegrenses com seu mais longevo evento cultural.
Uma feira mais inclusiva
A 68ª Feira do Livro começou com a promessa de ser a edição mais inclusiva de todas. Responsável pelo evento, a Câmara Rio-Grandense do Livro (CRL) contou com o auxílio da Semearhis, uma startup de impacto social especializada na inclusão assertiva de pessoas com deficiência.
— Nossa missão é garantir o pleno acesso ao livro, acolhendo todas as pessoas que quiserem participar. Por isso, buscamos uma empresa especializada para nos ajudar neste trabalho — explica o presidente da CRL, Maximiliano Ledur.
Confira no vídeo os obstáculos enfrentados na Praça:
Uma das iniciativas para tornar o evento mais inclusivo foi a capacitação de todos os livreiros na língua brasileira de sinais (libras). Bruna Tessuto, da editora Metamorfose, ressalta a importância do treinamento:
— Foi obrigatório, o que acho bem importante. Uma tarde inteira aprendendo o básico para conseguirmos nos comunicar durante uma venda. E realmente coloquei em prática. Quando a pessoa apareceu na minha frente fazendo os sinais, gelei, fiquei com medo de não conseguir. Mas deu certo. Assim que fiz o "oi" com a mão, ela sorriu.
Boa iniciativa
Na Estação da Acessibilidade, presente na Feira do Livro desde 2013, é possível encontrar mapas táteis e materiais em braile. Também há banquetas móveis para pessoas com nanismo e triciclos elétricos para quem tem dificuldades de locomoção, disponíveis para empréstimo. Basta apresentar um documento de identidade e sair motorizado para curtir o evento.
Outra novidade é a presença de intérpretes de libras, preparados para fazer a tradução de palestras, oficinas ou bate-papos com os autores. A previsão é um total de 137 horas de tradução em libras até o último dia do evento.
Pessoas cegas ou com baixa visão também podem usufruir do evento com maior autonomia. Além dos mapas táteis, feitos em 3D, a programação da feira e a lista de livreiros participantes estão disponíveis em formato braile. Também em braile, a Estação da Acessibilidade disponibiliza obras literárias para compra ou doação.
Responsável pelo atendimento na Estação da Acessibilidade, Cris Cagliari conta como a tecnologia está a serviço da inclusão:
— Espalhados pela feira, há cartazes com um QR code. É só acionar que ali tem um intérprete virtual.
Outros profissionais da Estação da Acessibilidade estão a postos para acompanhar pessoas com deficiência visual pela Praça da Alfândega, fazendo audiodescrição de todo o passeio.
Pode melhorar
A iniciativa é válida no que condiz às facilidades voltadas às pessoas com deficiência. No entanto, um ponto que chamou atenção durante a reportagem foi a localização do espaço: sobre uma plataforma de madeira, à qual só se consegue acessar com o auxílio de uma rampa. Esta, além de íngreme, conta com pequenos degraus no início e no final. Foi preciso ajuda de outra pessoa, o que invalida a tão necessária autonomia dos PcDs.
Um tablado único seria uma alternativa, caso se estendesse por toda a Praça da Alfândega. Questionada sobre as dificuldades que cadeirantes enfrentam ao percorrer a feira, Cris salienta que a hipótese chegou a ser levantada, mas esbarrou em um problema.
— A gente tentou, neste ano, fazer um tablado geral (para toda a Praça da Alfândega), mas faltou "tempo" — conta ela, sinalizando com os dedos para a falta de grana para o investimento.
Letícia Francisco, CEO da Semearhis, falou sobre a possibilidade de colocação de esteiras em toda a Praça da Alfândega:
— Foi cogitado, mas o problema é a questão de projeto orçamentário, de tempo hábil, porque foi tudo muito corrido. A partir do ano que vem, já se consegue fazer melhorias. Mas tudo que foi possível fazer dentro de tempo e orçamento foi feito.
Fora de alcance
Protagonistas da festa literária porto-alegrense, os livros estão por toda a parte. Entretanto, tocar, ler a sinopse ou folhear o exemplar desejado requer uma boa dose de elasticidade para quem usa cadeira de rodas. As bancas estão a uma altura quase inalcançável e, se a escolha for pelos famosos saldos, a dificuldade é ainda maior. Ao conversar com os livreiros, vários deles apontam que a altura dos estandes é um dos obstáculos para boa parte do público.
— O que me dá muita agonia na feira é a altura dos estandes. As pessoas que usam cadeira de rodas ficam se espichando para conseguir olhar os livros, na maioria das vezes sem sucesso — destaca Bruna Tessuto, da editora Metamorfose.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, cerca de 25% da população tem algum tipo de deficiência, brasileiros que têm os mesmos direitos de estudar, trabalhar e circular por eventos culturais, como a Feira do Livro.
De acordo com Janaina Witt, executiva de mercado da Semearhis, o caminho está sendo construído, mas há muito o que aperfeiçoar:
— Precisamos atingir essa população e, em geral, percebemos grandes falhas nos eventos.
Letícia Francisco promete melhorias:
— A respeito da altura das bancas, eu estava no dia da reunião em que a comissão comentou com todos os livreiros que deveria haver uma altura mínima, não só pensando nos cadeirantes, mas nas pessoas com nanismo. Alguns estandes foram feitos mais baixos, outros (livreiros) não levaram isso em consideração. Uma coisa que posso afirmar é que, no ano que vem, isso já está configurado como obrigatoriedade de todos os estandes, padronizar tudo.
Pausa para um "pipi-stop" é outro entrave
Após duas horas de subidas, descidas e obstáculos, bateu aquela vontade de ir ao banheiro. E junto, um frio na barriga ao pensar: "Há banheiro adaptado na feira?". A dúvida foi sanada por dois policiais militares, que apontaram para um local bem distante. Cadeira vai, cadeira vem, buracos desviados, o público aumentando com o passar das horas, até que, finalmente: vários banheiros químicos, inclusive para cadeirantes.
Distraído, um homem quase entrou no espaço reservado, alheio à sinalização e ao tamanho bem maior da "casinha". Em cinco minutos, outras duas pessoas tentaram utilizar o sanitário reservado. Para além das distrações de alguns pedestres, o grande problema do banheiro é a infraestrutura. É preciso a ajuda de outra pessoa para segurar a porta, empurrar a cadeira e galgar o degrau na entrada do banheiro. Em um momento tão íntimo, todo esse processo é, no mínimo, inconveniente.
Procurada pela reportagem, a Câmara Rio-Grandense do Livro afirmou que não havia recebido sinalização de problemas de acesso aos banheiros químicos. A partir da observação da repórter, já entrou em contato com a empresa terceirizada que instalou-os para que as dificuldades encontradas sejam resolvidas.
Ao lado de Drummond, na Praça da Alfândega, a estátua do escritor gaúcho Mario Quintana (1906-1994) parece menear a cabeça, inconformada, ao presenciar a aventura de uma jornalista cadeirante na Feira do Livro. A repórter olhou para o poeta e pensou: "É, Quintana, eles passarão... Eu não".
Experiência de Cris Lopes
Cheguei na Feira do Livro de Porto Alegre por volta das 16h de quinta-feira (10). Decidi caminhar despretensiosamente pelos pavilhões do local, esperando que aparecesse algum voluntário ou coordenador para orientar ou me direcionar até a Estação da Acessibilidade.
Não demorou até que, sem querer, acertei o pé de uma criança, que gentil e educadamente me ofereceu ajuda. As atitudes bastante cordiais e solidárias das pessoas até me fizeram esquecer da Porto Alegre inacessível e silenciosa de quase todos os dias. Sou cega desde o nascimento e é a segunda vez que vou à Feira do Livro, sempre a trabalho.
Começo, aqui, pelos pontos positivos da 68ª edição.
Fiquei sabendo do treinamento de um atendente por banca para receber pessoas surdas, usando a língua brasileira de sinais. Uma pena serem somente duas horas de capacitação, o que gerou uma dificuldade considerável de compreensão por uma frequentadora que pediu para não ter o nome citado.
Fiquei surpresa com alguns detalhes: duas bancas ofereciam obras em braille, o melhor de tudo é que os preços dos livros em braille eram cerca de R$ 2 mais caros do que os preços dos livros em tinta (as obras em braille geralmente são divididas em mais volumes do que as tradicionais, o que as torna mais caras), três autores que autografavam naquela tarde disponibilizaram seus livros de forma digital para compra. Nas bancas pelas quais passamos, somente duas não ofereciam livros digitais para venda ou download gratuito.
Em duas bancas visitadas, fui a primeira deficiente visual a acessar as obras em braille. Problema de divulgação do próprio evento ou desinformação dos participantes.
Para quem tem deficiência visual, as pedrinhas da rua não são exatamente algo terrível, são bem toleráveis, já que compõem a arquitetura do local e não haveria muita solução. No entanto, é de se pensar se a estrutura usada como espécie de "palquinho" para os autógrafos não poderia se expandir por toda feira — tipo uma passarela —, tornando a vida de quem tem deficiência física e mobilidade reduzida bem mais fácil.
O longo tempo esperando por alguém que me guiasse até a Estação da Acessibilidade, ou para qualquer outro lugar, foi a parte mais desagradável de todo esse trajeto. Algo como um mapa tátil, com quadradinhos colados para auxiliar daltônicos a enxergar as cores, deveria ser integrado à Feira do Livro nos próximos anos.