Geógrafa urbanista com mestrado em Planejamento Regional e Urbano, a portuguesa Maria Teresa Craveiro Pereira, 74 anos, é referência nos debates sobre cidades modernas, aprazíveis e feitas para as pessoas. No seu currículo, destaca-se a atuação no planejamento estratégico de Lisboa entre 1989 e 2017. Em parte desse longo período, ela atuou na equipe do ex-prefeito Jorge Sampaio, mentor da transformação que catapultou a capital portuguesa da decadência para o mapa das principais atrações turísticas e de qualidade de vida da Europa. Teresa esteve em Porto Alegre em março e conversou com a reportagem de GZH sobre a ascensão lisboeta e os desafios das cidades do futuro, incluindo a capital gaúcha.
A senhora coordenou iniciativas de revitalização em Lisboa. O que acontecia com a cidade e que era necessário transformar?
Em Lisboa, em 1989, ganhou a prefeitura uma coligação nova, que trouxe, acima de tudo, a ideia de que era preciso revitalizar o planejamento e rever o plano diretor, que era dos anos 1960. Lisboa atrasou-se nisso. Foi a equipe do Jorge Sampaio (então prefeito), que depois foi presidente da República, que entrou com essa metodologia. Em parte, fomos buscar em Barcelona o planejamento estratégico. Mas com uma grande particularidade em Lisboa, em que tínhamos três elementos que funcionaram simultaneamente: o plano estratégico, o plano diretor e os planos e projetos prioritários. Ou seja, três tabuleiros que, em vez de estarem em cascata, fizemos simultaneamente. O planejamento não pode ser apenas uma pauta regulamentar para a iniciativa privada. Tem a ver com o cotidiano da população. Foi muito inovador. Houve uma área que eu coordenei, de inventário do patrimônio. Inventariamos elementos patrimoniais dos anos 1960, o que também foi uma inovação. Isso foi muito importante porque, até os anos 1990, estavam sendo demolidos muitos edifícios patrimoniais em Lisboa, perdendo identidade por uma pretensa modernidade que já estava até fora do tempo.
A revitalização do Cais do Sodré foi um dos principais símbolos dessa transformação?
Esse já foi o segundo. O primeiro símbolo foi a zona ribeirinha. Tínhamos o porto, como vocês também têm (referência a Porto Alegre), como uma barreira ao usufruto. E o porto estava extenso, com zonas desativadas. Negociamos com a administração do porto de Lisboa, que tinha autonomia plena, e foi decidido que as áreas de porto seriam porto. As outras áreas seriam para lazer e outras atividades. Houve restauração em uma grande extensão. Foi uma negociação dura porque o porto achava que não deveríamos entrar. E o prefeito fez reuniões diretas. O slogan era que Lisboa queria se ligar ao rio sem perder o porto. Por quê? O porto para nós é uma razão da existência de Lisboa desde os tempos dos fenícios e romanos. E não éramos contra o trabalho. Os postos de trabalho que o porto ocasiona fazem parte da cidade. Quisemos fazer uma coexistência. E foram feitos restaurantes e zonas de lazer. Isso foi muito importante porque abriu a cidade e o convívio no espaço público. O lisboeta começa, em 1990, a perceber o espaço público. Começaram a vir excursões de Paris só para ver as docas de Lisboa. O lisboeta foi exigindo cada vez mais uma cidade qualificada. Isso não existia até então. Até a década de 1990, os portugueses não comiam na rua e não havia esplanadas. Os últimos 30 anos levaram a mudanças muito grandes. Lisboa, neste momento, é uma cidade cosmopolita e glamourosa.
Em um processo de revitalização, a coexistência de bares, restaurantes, vida noturna e empresas, junto dos espaços públicos, é importante?
Neste momento, temos uma procura muito grande de nômades digitais. A cidade tornou-se cosmopolita, e há uma procura de gente que trabalha para o mundo inteiro e que se instala em Lisboa, aluga casas ou alojamentos. Mas há problemas. Em um bairro se convive mal com a questão dos ruídos. A partir de 2015, com a introdução do alojamento local (Airbnb e assemelhados), houve problema nos bairros históricos. Houve muita transformação de prédios em alojamentos, o que acabou expulsando os moradores dos bairros históricos. É um problema que, neste momento, estamos tentando contornar impedindo que os bairros históricos tenham mais alojamentos. O mais grave, no fundo, é perder a identidade. A cidade deve ser boa para os moradores e, depois, usufruída pelos turistas. E não o contrário. A identidade patrimonial e do bairro são fundamentais.
O turismo cresceu tanto que está colidindo com o bem-estar dos habitantes em Lisboa?
É uma massificação, mas temos de ter cuidado para não sermos xenófobos. Os problemas são regras, distribuir (o imigrante ou nômade digital) por toda a cidade e não apenas no casco histórico. O que precisamos é regular. Isso é o que está em discussão neste momento em Lisboa. Regular alguns bairros em que não poderão crescer mais os alojamentos, e outros em que poderão. O censo mostra que as zonas de procura coincidem no centro, com perda de população. Lisboa tem outras zonas que podem ter alojamento local. Temos muitas habitações vagas (em outros bairros). A tentativa é de que os proprietários ponham no mercado esses prédios para alugar. Temos população mais jovem que não consegue alugar casa em Lisboa, dado o preço e a renda. Com todo o glamour da cidade, vieram muitos nômades digitais e gente com dinheiro. E os jovens lisboetas não têm dinheiro e vão para a periferia. É o preço do sucesso de Lisboa. Por ter se tornado glamourosa, cosmopolita e global, trouxe esse problema: mesmo casais que se separam estão ficando na mesma casa porque não há habitação. Tornou-se caro viver e morar em Lisboa. Todos os migrantes que estão chegando, brasileiros, paquistaneses e indianos – porque não temos mão de obra suficiente –, vivem em cortiços. Isso é um problema. Está em discussão com as entidades patronais a criação de retaguarda para trabalhadores de restaurantes e hotéis.
O mais grave, no fundo, é perder a identidade. A cidade deve ser boa para os moradores e, depois, usufruída pelos turistas. E não o contrário. A identidade patrimonial e do bairro são fundamentais.
Estrangeiros que investissem 500 mil euros em imóveis em Portugal ganhavam o visto de ouro. Isso produziu supervalorização de imóveis?
Sim, mas isso é um segmento de classe média e alta. O governo está proibindo e não haverá mais (o visto de ouro). O entendimento é de que, se isso deixar de existir, poderá baixar os preços ofertados. Jorge Sampaio dizia algo interessante, que tínhamos de colocar Lisboa no mapa da Europa. Uma cidade que era periférica. Tenho amigos que viviam em uma casa maravilhosa no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, e a deixaram para trás. Hoje, vivem numa habitação pequena em Lisboa, mas ganharam o espaço público, a segurança e a vida cultural. No fundo, essa é a atração por Lisboa.
No período de revitalização, Lisboa disputou e acabou escolhida para sediar a Agência Europeia de Segurança Marítima. Isso agregou para a cidade?
Foi muito importante. Estive à frente desse projeto. Estávamos disputando até com Barcelona. Quando a Europa e Bruxelas (sede da União Europeia) disseram que iriam distribuir várias agências de diferentes temáticas pelas cidades, entendemos que a agência de segurança marítima tinha relação com nossa memória simbólica. E fomos disputá-la. Colocamos junto ao (rio) Tejo. E Bruxelas optou por nós, em detrimento de Barcelona. Isso mostra que, às vezes, um projeto, para ganhar, não pode valer apenas por si, mas também pelo que oferece de potencialidades simbólicas. Isso agrega prestígio. Ali se comanda muita coisa da Europa para os mares. O planejamento estratégico precisa ter a visão de que ele é técnico, mas vai ouvir as pessoas a quem se dirige e perceber se o produto que está sendo construído serve ou não a elas. Essa é a grande diferença.
A senhora diz que, antes da revitalização, o centro de Lisboa estava decrépito. A presença de pessoas é essencial para que um lugar não fique esvaziado?
Claro. Eu trabalhava na prefeitura e, por vezes, quando saía de reuniões pelas 21h, ouvia meus passos. Agora, se você for lá, são ruas inteiras com restaurantes e muitos hotéis. Mas não basta atrair a população. Mesmo em um centro histórico, eu tenho de trazer os equipamentos de proximidade. A grande discussão que se faz na Europa é a cidade dos 15 minutos. Eu quero viver onde tudo esteja próximo em até 15 minutos a pé. A escola, o mercado, a creche, o centro de saúde. A cidade de 15 minutos que Paris está implementando é a grande discussão. Isso leva os urbanistas a retomar os equipamentos de proximidade, o que inclui também os comércios. Isso reduz o uso do automóvel. Esse é o paradigma.
A grande discussão que se faz na Europa é a cidade dos 15 minutos. Eu quero viver onde tudo esteja próximo em até 15 minutos a pé. isso reduz o uso do automóvel. Esse é o paradigma.
Com a ascensão do mundo digital, operações físicas estão sendo reduzidas. Qualquer cidade grande está cheia de prédios que tinham serviços públicos e agências bancárias e, hoje, estão vazios. Isso está deixando edifícios desocupados em áreas antes movimentadas. Como lidar?
Isso é a cidade pós-covid. Acredito que vamos encontrar um modelo que seja meio-termo. Tem gente já saturada de ficar em casa e no teletrabalho. Vão se criar os híbridos. Neste momento, o que estamos debatendo é que os edifícios públicos que estão vazios sejam vendidos aos privados para fazer habitação. Ou que o próprio Estado faça habitação, até porque temos uma porcentagem muito pequena de habitação pública. Temos 2% em Portugal, quando na Áustria é 30%. Estamos em um período interessante, um novo paradigma, de não deixar a cidade solitária. Não quero todas as pessoas em casa. Quero que venham para fora, usufruam e convivam.
O papel da União Europeia foi importante na transformação de Lisboa?
Foi fundamental. A União Europeia abriu o cosmopolitismo que nós temos. Não só o comércio. E o contato com a abundância de oferta. Veio dinheiro para reabilitar edifícios. A discussão que se faz é se nos tornamos dependentes ou não. Nós éramos muito pobres. Havia mortalidade infantil elevada, havia poucos equipamentos e havia uma elite que estudava. O resto, não. Hoje a maioria da população está nas escolas. A União Europeia foi importante. E, pela primeira vez, a União Europeia põe na agenda que a habitação é uma questão problemática na Europa. Exatamente quando há essa discussão em Portugal sobre habitação.
A senhora teve, na prefeitura de Lisboa, uma experiência com editais públicos em que pessoas ou instituições da sociedade civil apresentavam ideias a serem financiadas pelo governo para fazer melhorias em regiões da cidade?
Isso está em andamento. Identificamos 67 bairros críticos e que chamamos de bairros de intervenção prioritária. Todos os anos há 1,5 milhão de euros em dinheiro, o que para nós é bastante, e que é distribuído entre ONGs, arquitetos, jovens. Eles podem inventar projetos que quiserem para aqueles bairros. Temos categorias como empreendedorismo, espaço público, proximidade. Tem um júri que eu presidi por sete anos em que escolhemos os projetos e o dinheiro é distribuído para os bairros. Depois, durante um ano, são fiscalizados e é monitorado o que os projetos deixam para os bairros. É interessante porque permitiu o desenvolvimento local.
Que exemplos desse projeto a senhora destacaria?
Criou-se, por exemplo, uma pista de skate. Era um bairro de alojamento que não tinha zona de convívio para os jovens. Outro foi o projeto “a avó vem trabalhar”. Designers chamaram avós que fazem bordados, coisas lindas, e vendem. Outros criaram hortas urbanas. A diversidade é muita. É interessante ver a energia daquelas comunidades que têm projetos todos os anos. Alguns bairros ganham, outros, não, mas todos têm projetos contemplados. O urbanista não pode pensar só no macro, nos regulamentos e nos planos diretores.
Essa é uma forma mais democrática de uso de parte do orçamento público?
Eu acho. Eles (contemplados) não ficam livres, nós selecionamos. É muito criterioso. O júri tinha gente de fora, desde artistas, investigadores, era proporcional. No fundo, é um júri que tenta ser autônomo. A política nunca interviu. O júri fechava-se durante oito dias, eram lidos todos os projetos e discutidos. Era uma discussão duríssima entre nós. Cada um dava nota e tinha de justificar. Isso criou uma vivência em que pessoas são pessoas. E a cidade é para as pessoas.
O quanto a sensação de segurança é importante para a ocupação dos espaços públicos?
As pessoas dizem que procuram Lisboa porque a segurança é total. Chegam americanos que dizem que Portugal é a Flórida. Ingleses e alemães estão lá. Franceses, muitos. Os franceses não pagam impostos para viver em Portugal. Os suecos também eram assim, mas, agora, a Suécia começou a exigir os impostos e alguns foram embora. Não vamos ser ingênuos, também tem a ver com essas facilidades. Mas a questão da segurança é fundamental. Tenho amigos brasileiros que falam muito disso, do gosto de sair ao final da tarde, tomar um vinho numa esplanada, essa sensação de se encontrar e falar. Eu fico admirada sobre como deixaram coisas tão fantásticas (no Brasil) para se instalar em Portugal, e eles me dizem que é sobre a segurança e a liberdade.
A senhora conheceu o 4º Distrito, em Porto Alegre. O que achou?
Fiquei muito impressionada com o Distrito Criativo. Não são só startups. É, de fato, território. E o território tem muitos parceiros que foram para lá. Tem galerias de arte, antiquários e gastronomia. Tem uma diversidade imensa e de grande qualidade. A cidade é interclassista. Politicamente, às vezes, se aborda que, por ser vulnerável, nada pode ser tocado. E vai ser vulnerável sempre. Quero que as pessoas subam. Às vezes, há receio do capital e dos parceiros, o que faz com que essas populações vivam 10, 20 ou 30 anos nas mesmas condições. O que temos de discutir é como a prefeitura e os urbanistas conseguem qualificar e trazer outras classes e, ao mesmo tempo, melhorar essas classes. A coexistência melhora a existência nas cidades. Aquele bairro dos papeleiros (Vila dos Papeleiros, em Porto Alegre) tem de ser melhorado. Eu não vou dizer que eles vão ficar piores porque se está por fazer uma transformação daqueles galpões e ruas completamente obsoletas.
O que precisarão as cidades do futuro para serem aprazíveis?
Tem uma certa loucura. Outro dia eu vi os projetos chineses apresentados na ordem dos engenheiros, coisas em que andamos todos quase em aviões. Eu acredito que a cidade passa por uma grande exigência de cidadania. Os jovens exigirem qualidade, participarem muito, isso já acontece em Lisboa. Aparece um buraco e logo mandam um e-mail para a junta da freguesia, fazem fotografia. Eu acredito que isso vai aumentar e que vamos caminhar para uma democracia mais robusta, como a Inglaterra e até mesmo os Estados Unidos. É uma participação propositiva, não só reivindicatória. O urbanismo tem a ver com o seu cotidiano. É a cidade dos 15 minutos, a cidade da proximidade. Precisamos ter muito cuidado com a questão do que é online e de as pessoas ficarem sozinhas. O homem não se fez para isso. O homem tem de conviver, entrosar. Isso é a saúde mental. Cada vez mais também se discute o que é a cidade saudável. Nós trabalhamos nisso em Portugal, no plano de pedestres. O que é isso? Todos nós, mesmo os idosos, temos de andar pelo menos 30 minutos. Quais percursos podemos identificar que levem as pessoas a andar todo dia ao menos 30 minutos?
A senhora conhece o Orçamento Participativo de Porto Alegre?
Portugal importou essa experiência. Eu acho que o Orçamento Participativo tem alguns engodos. Tanto em Portugal quanto aqui. Houve uma experiência de Belo Horizonte que achei muito interessante, em que não se ficava completamente em liberdade para fazer a proposta. A prefeitura dava listas de coisas que faltavam e, depois, a população escolhia. Não fica livre. O que aconteceu em Portugal e em Lisboa? Hoje está parado, mas as populações não sabiam o que fazer. Fizeram coisas completamente loucas ou em contradição com o que estava projetado na cidade. É preciso haver um rigor. E, enquanto técnica, dar à população a sua margem de decisão, mas não deixar completamente livre. Por isso eu gostei da experiência de Belo Horizonte. Eles detectam as carências e põem à votação. É mais interessante porque há um binômio entre a prefeitura e os técnicos e a população.