Certo dia, chegou à oficina de E. Flores, no Centro Histórico de Porto Alegre, um senhor acompanhado de uma menina. O computador da garota havia estragado e o pai decidiu levar uma antiga máquina de escrever ao conserto, para não deixar a filha sem opção. A criança bateu o trabalho da escola na Olivetti, olhou para os homens no recinto e perguntou:
— Onde imprime?
A história é típica de quem não conhece a tecnologia das máquinas de escrever – afinal, não é qualquer invento que passa, instantaneamente, o texto digitado para o papel. O funcionamento dos centenários equipamentos, no entanto, é a especialidade de Ebanez Flores, 83 anos, que há 51 anos mantém a loja E. Flores na Rua Espírito Santo, 394.
O comércio, próximo da esquina com a Rua Washington Luiz, tem estantes repletas de raridades: Continental, Elgin e Royal dividem espaço com as tradicionais Olivetti. Uma Remington 12, toda de ferro, é estimada como a mais antiga, montada há cerca de 100 anos - não há data de fabricação impressa na maioria dos itens.
Mas ainda existem clientes nesse tipo de mercado? A resposta é: sim, quase todos os dias.
— Tem gente que traz a máquina que foi do pai ou do avô, e querem dar de presente pro filho. Eu já ouvi de um policial civil que usa datilografia porque depois não podem alterar o depoimento, só se colocar o corretivo, mas aí fica a marca. E se cai o sistema, o advogado pode finalizar e não perder a causa — lista o técnico.
Na oficina, parte dos produtos expostos é de clientes, que precisam de um pequeno reparo ou manutenção pela inércia dos componentes. Uma das dificuldades do avanço do tempo é a compra de fitas para os modelos manuais, elétricos ou eletrônicos, pois o número de distribuidores, hoje, é muito reduzido.
Outras máquinas foram negociadas por quem se desfez do que imaginava ser entulho, ou precisava liberar espaço em casa. O técnico pinta o corpo do equipamento, troca barras com defeito, revisa cilindro e compressor. O valor de um aparelho revitalizado varia, mas chega a ultrapassar R$ 1,5 mil em alguns casos. Há opções abaixo de R$ 500, em especial as mais compactas.
Barulhentas redações o conquistaram
Ebanez entrou pela primeira vez em uma redação jornalística na Caldas Júnior, no final dos anos 1960. Era vendedor, mas tinha um segundo interesse: usar o telefone para falar com seus chefes, na matriz, em São Paulo. Na época, uma ligação interurbana podia demorar horas para ser conectada. Enquanto aguardava, ficou observando o barulho incessante das teclas. Criou laços e o desejo: a máquina de escrever seria sua profissão.
— Liguei pra São Paulo, pedi pra me demitirem e com o valor da rescisão eu comprei a empresa que fazia manutenção. Empresa, não, né, meia dúzia de ferramentas — brinca, ao lembrar da pouca estrutura.
Flores passou pelo Diário de Notícias e, com a alta demanda do jornal Zero Hora, virou exclusivo do Grupo RBS, atendendo na própria sede da empresa.
— Era muita máquina, então eu passei a ser o técnico à disposição da Zero Hora — recorda.
Foram 24 anos de atendimento à ZH, entre 1974 e 1998. Os ficheiros até hoje mantidos em sua posse têm data, código da máquina, marca, modelo e numeração.
Sua paixão pelos equipamentos não era compartilhada por todos os profissionais que brigavam com o teclado. O desacordo quase lhe meteu em confusão, quando debateu a criação de um panfleto com fins educativos aos repórteres.
— Eu queria fazer um memorando e passar para os repórteres pedindo pra cuidar da tampa das máquinas. Mas me disseram, “não faz isso”, os repórteres são as meninas dos olhos do seu Maurício Sobrinho — recorda.
O jornalista Antônio Carlos Macedo, que viveu o período das redações - ainda mais - barulhentas, defende os colegas.
— No bater as teclas com rapidez, muitas vezes a gente batia duas juntas e dava uma “acavaladinha” nas teclas. Tinha que bater (próximo do papel) para “desacavalar”, e rapidamente seguir o texto. Se tivesse que tirar a tampa, era um trabalhão. Na época, já se contavam segundos — explica Macedo, durante o programa Gaúcha Hoje, da Rádio Gaúcha, na manhã desta quinta-feira (12).
No fim das contas, o técnico entrou em acordo com as equipes de limpeza: elas retirariam as tampas do lixo, salvando a peça e a harmonia na redação.
Fax, calculadoras e máquina registradora
Na oficina, Flores conta com um fiel escudeiro. Jorge Cipriano Neto Vargas, 66 anos, está há quatro décadas na feição de monta e desmonta dispositivos.
— Gostei e jamais abandonei — resume.
A contabilidade da empresa é feita a mão, em um livro de registro de folhas desgastadas. Ao analisar os números, nota que o movimento está fraco em janeiro: menos de uma dezena de atendimentos ocorreram nas duas primeiras semanas de 2023. Ao lado da escrivaninha, um fax é mantido fora da tomada, pois o último documento que por ali passou já fugiu da memória.
A linha principal de produtos é acompanhada por outra tecnologia obsoleta: calculadoras com bobinas para emitir extrato. Sharp, Casio, Canon e Panasonic estão entre as mais populares, espalhadas pelo imóvel. Ao todo, ele contabiliza 640 aparelhos.
Em outro canto, uma máquina registradora acabou abandonada por uma família que pagou R$ 750 pela assistência, em 2015, mas jamais retirou o volumoso objeto. Situação semelhante vive uma linda Olivetti Lettera 32, encomendada na cor vermelha, e que espera há anos pelo comprador.
Sacanagem maior, só a do repórter de GZH, ao questionar a velocidade de navegação na internet das máquinas de escrever.
— Não tem nem 1G. Só a tecla G — responde, devolvendo a provocação.