Integrantes da comunidade indígena Caingangue e Xoclengue estabelecida em ocupação no bairro Morro Santana, em Porto Alegre, afirmam que não pretendem deixar o local, que é objeto de ação para reintegração de posse determinada pela Justiça. Conforme as lideranças, todas femininas, cerca de 40 pessoas, entre adultos, crianças e idosos, estão vivendo na área que também é reivindicada pela Maisonnave Companhia de Participações, que planeja construir prédios no terreno. O acampamento foi denominado Retomada Gãh Ré.
A disputa judicial teve seu mais recente episódio no último dia 15, quando a desembargadora Marga Inge Barth Tessler, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), negou provimento para recurso do Ministério Público Federal (MPF) e manteve a reintegração de posse determinada em decisão de 27 de outubro.
— Por que precisamos de favor para podermos viver em um território que originalmente é nosso? Ninguém nunca comprou terras de mim, nem dos meus pais ou avós. Faço parte da terceira geração que busca um lugar para reconhecer como seu, mas não sabe que futuro deixará para os filhos e netos. Em nosso modo de pensar, não se trata de ocupação ou de demarcação. Gosto de falar e ensinar meus netos que a terra-mãe pertence a todo ser vivo — desabafa a cacica Iracema Gah Té Nascimento.
A anciã iniciou uma greve de fome depois que a Justiça confirmou a ordem de retirada de seu povo, no dia 15. Ficou quase uma semana alimentando-se apenas com água para não sucumbir a uma desidratação grave. Na véspera de Natal, a cacica suspendeu, ao menos temporariamente, esse método de protesto, a pedido de familiares.
— Meu netinho mais novo, Joaquim, que vai completar dois anos no dia 31 de dezembro, me fez repensar a atitude, por enquanto. Me trouxe um pratinho de sopa de milho e não saiu de perto enquanto não dividiu a comida comigo. Isso não quer dizer que desisti. Se a Justiça não analisar melhor nossa situação e insistir em nos expulsar, voltarei a protestar. Estou pronta para dar a vida pelo meu povo — assegurou, emocionada.
O recuo na decisão de colocar a saúde e a vida em risco pela falta de nutrientes também decorre da perspectiva de uma revisão da decisão pelo TRF4. Desde que o conflito sobre a propriedade da terra ganhou notoriedade, a comunidade tem recebido o apoio de voluntários de diversas frentes.
São advogados, pesquisadores, historiadores, antropólogos, ativistas e militantes de causas sociais, engajados em dar suporte para que os indígenas tenham, ao menos, a capacidade de prestar seus argumentos diante da disputa judicial.
De acordo com o advogado que representa o pleito recente da comunidade perante a Justiça, Dailor Sartori Junior, ocorreram diversos movimentos por pedidos de liminares realizados nos últimos dias. Porém, ele diz considerar que ainda não há uma definição sobre o tema.
— A Justiça tem analisado esses pedidos em regime de plantão, mas temos a expectativa de que ocorra uma análise mais aprofundada a partir do retorno das atividades judiciárias após o recesso de final de ano, em 6 de janeiro. De momento, o processo está suspenso e não há perspectiva de uma execução forçada da ordem de reintegração — explica o advogado.
Para Sartori Junior, seria injustificável uma ação de reintegração durante o período de recesso, já que, segundo o representante, a comunidade é uma parte sensível, vulnerável economicamente e formada por idosos, gestantes e crianças, entre os adultos que chefiam as famílias.
— O ideal seria termos mais tempo para apresentação de argumentos — aponta o advogado.
Existe também, segundo ele, uma grande divergência acerca do tempo de ocupação e reivindicação da área em discussão. Conforme o processo, movido inicialmente pela Maisonnave, o grupo teria ocupado o local a partir de outubro desse ano. Iracema e seu grupo contestam essa versão.
— Faz 30 anos que estamos aqui. Uns chegam, ficam, depois saem para outras retomadas. Os povos indígenas precisam mostrar a conexão com a terra de seus ancestrais. Muitas vezes, mudando de local para prestar apoio a outras retomadas. Dizem agora que chegamos faz dois meses, mas não é verdade. Minhas filhas nasceram aqui. O umbigo delas está enterrado debaixo das árvores dessa floresta — sustenta a líder indígena.
Contraponto
A empresa Maisonnave Companhia de Participações foi procurada por meio de seus canais de comunicação divulgados no seu site. Foram feitas tentativas de telefonema, envio de mensagem para conta comercial de WhatsApp e pedido de entrevista por e-mail. Até a publicação desta reportagem, não houve retorno da empresa, resposta ou atendimento aos contatos feitos pela reportagem.
Moradias precárias envoltas por natureza exuberante
O cenário atual que pode ser observado no local é de abandono. Há estruturas remanescentes do que seria uma espécie de clube de férias mantido pela Maisonnave, uma antiga casa construída com alicerces e paredes de pedra e até uma grande piscina de azulejos desativada.
Resquícios do que teria sido um espaço de lazer no passado se misturam a moradias precariamente erguidas, entre pomares e hortas em que a comunidade cultiva frutas, hortaliças e grãos, como feijão e milho.
A paisagem na encosta do Morro Santana, contudo, é deslumbrante. O terreno onde está localizada a ocupação é circundado pelo monte que resguarda nascentes que abastecem o Arroio Dilúvio, por árvores nativas e por indícios da presença de animais silvestres. Orgulhosos, integrantes da comunidade exibem vídeos que mostram bugios — primatas que habitam florestas tropicais da América do Sul e estão ameaçados pelo risco de extinção.
A pintura, por fim, está emoldurada pela paisagem urbana da Capital. Os limites são os bairros Jardim Ipê, Jardim Ypu, Vila Cefer, Jardim Carvalho e Agronomia. Ao fundo, está o Morro Santana, que já teve grande parte integrada a uma área de preservação.
MPF vê atraso na análise para eventual demarcação
A judicialização recente é outro fator que surpreende os envolvidos na mobilização pela permanência no local. No pedido de reintegração de posse protocolado pela Maisonnave em outubro, a empresa diz que é "legítima plena proprietária e pacífica possuidora do imóvel" e argumenta que "exerce a posse do imóvel desde 1º de novembro de 1983".
O MPF, por sua vez, aponta a tradicionalidade da área e menciona a condição de miséria da comunidade, o atraso por parte da Fundação Nacional do Índio (Funai) na análise sobre a reivindicação pela demarcação e o fato de o imóvel estar hipotecado. Nos anos 1980, o Grupo Maisonnave passou por um processo de liquidação extrajudicial após condenação, e o imóvel foi dado em garantia de dívidas junto ao Banco Central. Até hoje, o terreno não foi reivindicado pela União.
No pedido, o MPF alega ainda, baseado em uma nota técnica produzida pelo Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que os membros da comunidade indígena "jamais deixaram de acessar, diariamente, as trilhas e matas do local, a fim de colher materiais para artesanato e ervas medicinais, realizar rituais e, em suma, vivenciar o modo de ser indígena" desde o início dos anos 1980.